
Johnson Tsang. Lucid Dream II – Under the Skin. Em: https://johnsontsang.wordpress.com/
Por Cleyton Andrade
A Europa do século XVIII testemunhou a entrada de conhecimentos sobre civilizações que até então eram praticamente desconhecidas. Hegel foi hostil ao oriente, embora, posteriormente, passasse a conceber o pensamento indiano como um sistema filosófico (Droit, 2004) mesmo que de um modo polêmico. A centralidade estaria numa experiência de negação do sujeito, referindo-se ao nirvana. Para ele, só na Grécia surgiria a liberdade da consciência em si, enquanto na Índia e no oriente haveria somente uma reflexão sobre o desaparecimento e a abolição. Isso selou os destinos do conceito de nirvana no pensamento europeu do século XIX.
O nirvana foi o centro e o principal nome de um pensamento da negatividade, enquanto experiência de aniquilamento, que se apresentou como uma ameaça filosófica e religiosa vinda do oriente (Droit, 2004). O conceito de nirvana ocupou o imaginário europeu como retorno de uma dimensão trágica do aniquilamento. Ao mesmo tempo, o século XIX colocou o pensamento indiano e o estudo do sânscrito nos principais centros intelectuais da Europa, e foi em torno deste conceito que girou o centro gravitacional de uma série de debate sobre o orientalismo.
A Ásia tornou-se, para o imaginário europeu, niilista e ameaçadora. As formas de expressão de uma inquietante relação com o nada conviviam com intensas produções intelectuais dos grandes centros. Na segunda metade do século XIX a Europa se deparava com movimentos operários, discursos fortemente políticos, revolucionários, debates sobre o racismo, e ao mesmo tempo a retomada cristã da tentativa de conversão dos povos. Uma Europa pessimista demorou a acolher o pessimismo filosófico de Schopenhauer, do mesmo modo que refutou o conceito indiano e budista de nirvana como horizonte de libertação. Parecia se tratar de um discurso infamiliar sobre o nada, sobre a aniquilação, a destruição e a morte, vindo sob o nome sânscrito de nirvana.
Na seção VI de Além do Princípio de Prazer, Freud discorre sobre as possibilidades de renovação e manutenção da vida relacionadas à introdução de novas quantidades de estímulos através da copulação. Se valendo das contribuições de Weismann e, sobretudo, de E. Hering, descreve o processo decorrente desta introdução de dissimilaridades vitais que conduzem, por razões internas, ao nivelamento das tensões químicas, ou seja, à morte. O paradoxo é que a união com uma substância viva diferente, magnifica a tensão, embora busque o prazer. O processo que gera tensão ao buscar o prazer exige um sistema regulatório. É neste ponto que afirma uma tendência dominante da vida psíquica com o esforço de diminuir, manter constante, abolir a tensão interna dos estímulos. O princípio de nirvana aparece pela primeira vez como uma expressão usada por Barbara Low, e em seguida é apontado como o maior indício para crer nas pulsões de morte.
Partindo da concepção dualista das pulsões, incialmente como pulsões sexuais e pulsões de autoconservação/pulsões do Eu, procura articular uma função de prolongamento da vida e uma tendência de retorno a uma origem. Uma vez não realizado o intuito de encontrar essa conexão nos termos de ontogênese e filogênese, busca apoio na biologia, sobretudo na embriologia. A tese de uma morte natural por causas internas como aquela proposta por Weisman possui, dentro outros, o inconveniente de não se basear numa qualidade primordial da substância viva. A morte por conveniência não corresponde a uma necessidade, nem a uma tendência ao retorno. A tese de uma morte como adaptação parece ter pouco apelo junto à questão desenvolvida por Freud. O problema que recolhe da embriologia é a concepção de que a procriação seria uma qualidade primordial, mas não a morte. Não encontra aí nem mesmo uma narrativa inicial suficientemente estruturada para as bases de uma pulsão de morte, posto que seria uma morte provocada por falhas ou desvios adaptativos.
Uma concepção rudimentar da sexualidade caminha junto à interrogação sobre as vias que conduzem à morte. O problema se situa em como dar conta de uma reversibilidade entre morte e sexual. Ou seja, como é possível levar em conta o sexual e ainda assim um movimento rumo à morte que esteja presente desde a origem, e não uma aquisição ao longo do processo. Em resumo, como articular sexual e morte?
Entre as expressões dos processos morfológicos e o ponto de vista dinâmico, Freud opta por este. É aí que entra a menção à filosofia de Schopenhauer, para quem a morte não é uma aquisição tardia, nem é o resultado de uma falha ou o avesso de um luxo inconveniente. Schopenhauer entra no debate freudiano como um paralelismo filosófico onde a morte não é mero acidente, mas o autêntico resultado e o objetivo da vida, enquanto a pulsão sexual é a encarnação da vontade de viver.
A vontade de viver (Schopenhauer,2005) pode ser encontrada na natureza, entre os animais, enquanto nos seres de linguagem ela tenderia a ser menos caótica e feroz. O processo de socialização funcionaria como uma forma de apaziguamento parcial da insensatez da vontade de viver. Neste sentido, no melhor estilo do pensamento indiano e budista, o nome dessa negação da vontade de viver é o Nada, ou Nirvana. O nada indiano e budista é o nome schopenhaueriano de um exame filosófico e metafísico para a libertação do sofrimento causado pela afirmação da vontade de viver, através na negação desta vontade. A morte como objetivo e fim, como tratamento, não como contingência ou acidente.
É justamente esse o argumento do ponto de vista dinâmico que interessa a Freud: uma tendência que buscaria a morte enquanto um retorno à origem. O mundo como representação e a afirmação da vontade apontam para um mundo de semblantes. Para Schopenhauer seu trabalho não se restringe ao princípio da razão, que se caracteriza por uma ligação regular de uma representação com outra (Schopenhauer, 2005). O mundo se inscreve num “além deste princípio” não sendo uma mera consequência ou só uma conformidade com a razão.
Desde o Projeto de 1895, Freud se manteve fiel a um cientificismo fisicalista. Contudo, em 1920 se evidencia os limites do animismo fisicalista de Theodor Fechner que acreditava ter encontrado em 1848 um princípio universal: o princípio de prazer. Já em 1873 ele mesmo formula o princípio de conservação ou estabilidade da energia, com uma tese na qual, em um sistema fechado, a soma das energias deve ser constante (Evangelista, 2004). Em 1920 esse princípio é retomado, uma vez que o princípio de constância não é nada mais do que uma importação do princípio fechneriano, mesmo que ele já não gozasse de boa reputação científica no início do século XX, caindo em desuso (Evangelista, 2004). O primeiro problema aqui é a adoção de um modelo que concebe um sistema fechado para pensar a realidade psíquica e a vida anímica (Evangelista, 2004). Entretanto, o texto de 1920 se vale da embriologia para destacar um modelo onde os organismos elementares estão expostos às ações externas sendo passíveis de mudanças que conduzam à morte. O excessivo interior é tratado como exterior. Ou seja, a pulsão, proveniente do corpo, é tão exterior para o aparelho psíquico quanto qualquer outro excesso de energia vinda do mundo externo, que faz um furo, um trauma, impedindo que este sistema seja pensado como fechado. Eis um dos problemas em manter a adoção do princípio fechneriano.
Até às margens de 1920, o princípio de prazer é mantido ao preço de uma exclusão. A tendência à inércia procura reduzir a zero a quantidade. O funcionamento do princípio do prazer exige a exclusão sistemática de algo inassimilável, fazendo par com uma função regulatória de quantidades. O princípio de prazer, fechneriano, tem de funcionar em par com um princípio de inércia, constância, também fechneriano. O problema aqui em 1920 é que este funcionamento tem como fundamento uma hipótese quantitativa, que já não é mais suficiente para a concepção de prazer-desprazer. Essa palavra em sânscrito, nirvana, é 1) correlata ou ao menos contemporânea a uma torção metapsicológica, dando nome a um movimento de ruptura com o modelo fechneriano, e 2) é também correlata da passagem da concepção quantitativa da relação prazer-desprazer para a qualitativa.
Considerado os dois primeiros obstáculos epistemológicos: 1) a ruptura com um modelo fisicalista e 2) a passagem da concepção quantitativa para a qualitativa, ambos já justificariam a opção por outra palavra para nomear um princípio que demarcasse tais rupturas. Além disso, é preciso desfazer o risco de convergir e confundir princípio de nirvana e princípio de prazer, tal como o fez Low – e o próprio Freud. Ou ao menos esclarecer de que modo se dá tal relação, sob pena de cometer o equívoco de tomar o nirvana como uma ética hedonista de obtenção de prazer. O esclarecimento desta diferenciação poderá ser encontrado quatro anos mais tarde em O problema econômico do masoquismo, mesmo que as bases já estejam dadas em Além do princípio do prazer. Há uma dupla temporalidade para a compreensão do princípio de nirvana e suas relações com o princípio de prazer, pulsões sexuais e pulsões de morte. No texto de 1920 o princípio de nirvana converge com o princípio de prazer. Já em 1924, Freud dirá que se ambos os princípios visassem o mesmo fim, o masoquismo seria incompreensível. É como se fosse necessário esse intervalo de quatro anos para que Freud explicitasse a distinção entre ambos. A indiferenciação se mostra um erro. Na verdade, o princípio de nirvana pertence à pulsão de morte e expressa a sua tendência, e não a do princípio de prazer.
O princípio de nirvana expressa a pulsão de morte, enquanto o princípio de prazer expressa as exigências da libido. Porém, o princípio de nirvana sob a intervenção da pulsão sexual, se transforma no princípio de prazer. De um só golpe diferencia os dois princípios, explicita o percurso que fez em 1920 acerca da pulsão sexual e da sexualidade na concepção dualista entre pulsão de vida e pulsão de morte, e remete à função do mito de retorno. A distinção entre os dois princípios, além de reafirmar a ruptura com o modelo fechneriano, pode ser mais um abrigo para a possibilidade do uso de um novo nome para um princípio em novas bases.
Nirvana deve admitir o sentido de um além que não é um abandono do princípio de prazer, nem de um complemento. Deve estar em condições de atender ao movimento freudiano de fundar o real a partir da pulsão de morte. Em resumo, o nirvana foi o espelho das preocupações europeias com o vazio, com o nada, com o próprio medo do aniquilamento, da destruição e morte como formas da negatividade. Essa foi sua inscrição no século XIX. No início do século XX, contudo, ele havia se tornado um termo praticamente apócrifo da filosofia e da ciência. Portanto, quando Freud introduz o princípio de nirvana, em 1920, não é um exotismo, uma extravagância ou um mero elemento fortuito tomado de outra autora. Ele reintroduz um dos nomes dessa infamiliar questão da morte, um dos nomes do aniquilamento no século XIX, agora pouco depois da Primeira Grande Guerra. O Nirvana, palavra-conceito sânscrita em meio a palavras-conceito alemãs, pode ser entendido por leitores contemporâneos como um dos nomes desse infamiliar que retorna nas palavras de Freud.
Em homenagem a Walter José Evangelista
In Memorian