Por Glacy Gorski
“Lacan, (…) assumiu a lei da repetição e colocou seus passos no de Freud”.
J.-A. Miller, Silet
Neste trabalho, me proponho a realizar uma breve leitura do ensaio Além do Princípio do Prazer (FREUD, [1920], 2020) delimitando um enfoque no conceito de repetição, que, em 1920, foi propulsor de uma grande reviravolta no pensamento de Freud tendo efeitos significativos na construção do arcabouço teórico da psicanálise.
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Uma reflexão sobre a repetição está presente no texto freudiano desde os primórdios. Freud, em uma carta a Fliess, de 16 de abril de 1900, refere-se ao paciente E. e afirma que este concluiu sua análise, porém, “resta um remanescente dos sintomas” e diz que “[…] a aparente interminabilidade do tratamento é algo que ocorre regularmente”. Mais adiante diz que uma conclusão “assintótica não faz diferença”. (FREUD, [1887-1904], 1986, p. 410). Suas afirmações esclarecem que ele não se deixa guiar por um furor sanandis. Nesta passagem, ele se refere ao final da análise afirmando que temos restos sintomáticos que impelem à repetição, e remetem ao que há de intratável nos sintomas. Freud retorna a esta temática no seu texto considerado como testamentário intitulado A análise finita e a infinita (FREUD, [1937], 2017) e aponta que no final da análise temos “manifestações residuais”. Já no início da obra freudiana, constatamos que, associada à obsessão e à compulsão à repetição – que são marcas registradas da neurose obsessivo-compulsiva – der Zwang – a coerção mereceu especial atenção, pois ela traz, à luz, o caráter imperativo e a exigência coercitiva da pulsão e define o campo pulsional.
No intuito de cingir o conceito de repetição que contraria o Princípio do Prazer, optamos por dar maior destaque ao texto Além do Princípio do Prazer (que doravante faremos referência de forma abreviada – APP), pois é, neste texto, que um novo axioma foi instaurado. A partir deste momento, Freud passa a articular repetição e pulsão de morte, e a pulsão passou então a ser conjugada pelo automatismo de repetição. Nas suas reflexões, ele assinala seu surgimento no tratamento analítico, sua manifestação para além dos limites da clínica, seja no cotidiano das crianças (Fort/Da), seja na sua própria experiência de vida. As artes também atestam sua relevância.
Freud recorre à literatura trazendo passagens do paradigmático romance que tematiza a compulsão pela repetição: Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso – que Goethe soube de forma genial transformar em uma grande peça teatral. A repetição surge de forma dramática na vida de Tancredo, que, sem saber, mata Clorinda no campo de batalha. Logo após as cerimônias funerárias, ele adentra na floresta e, enfurecido, golpeia o tronco de uma árvore com sua espada e, para sua surpresa, vê o sangue escorrer tronco abaixo, ao mesmo tempo em que escuta clamores e reconhece a voz da amada. Só neste momento, ele se dá conta da repetição de seu ato. Clorinda: morta duas vezes.
Gostaria de sublinhar que a partir de dados extraídos da experiência clínica, Freud dá, à compulsão à repetição, o estatuto de conceito fundamental apontando que a repetição tem a ver com o traumático, o que gera desprazer. Portanto, a experiência clínica fornece evidências que apontam para além do Princípio do Prazer. Ao debruçar-se sobre a neurose histérica e os sonhos, ele pode avançar na formalização sobre o desejo, no âmbito do princípio do prazer. Entretanto, a experiência na clínica da neurose obsessiva lhe possibilitou trazer casos que servem de paradigma para a construção de sua segunda tópica, uma vez permite constatarmos, com clareza, o papel do gozo na construção dos sintomas. A compulsão à repetição remete a uma satisfação impossível, e sua marca é justamente não obedecer ao Princípio do Prazer.
No Seminário 23 – dedicado ao Sinthoma –, Lacan, logo no início, também recorre ao sintoma obsessivo porque, nele, a face de gozo se desvela. Ele faz referência à fábula de La Fontaine sobre uma rã que quer ser tão gorda quanto o boi e, sob o olhar de outra rã, infla até explodir. Lacan compara o obsessivo com esta rã e afirma que “Sabemos que é particularmente difícil arrancar o obsessivo dessa ascendência do olhar” ([1975-1976], 2007, p. 19), pois ele se encontra refém de um gozo escópico.
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Lacan, no Seminário 11, retoma a questão da repetição e, de forma pioneira, eleva este fenômeno destacado por Freud a um estatuto digno de um dos quatro conceitos fundamentais ao lado da transferência, inconsciente e pulsão. Isso tem consequências importantes para o futuro da psicanálise. Tomando como referência os escritos de Freud, ele elucida que não se trata de repetir reproduzindo o mesmo. Wiederholen, em alemão, significa buscar de novo (IDEM, p. 62). Ou seja, o que se repete não é o achado, mas sim o movimento, o circuito percorrido. Conclui, então, que “a repetição demanda o novo” (IDEM, p.62). A compulsão à repetição gira sempre em torno de algo que se perde e, por isto, o movimento se repete rumo a um encontro sempre fracassado.
Lacan, ao se deter na análise de Freud sobre a repetição, conclui que é possível reconhecer duas vertentes que, de certa maneira, têm uma interligação. A partir de suas reflexões, apresenta, então, suas duas faces: ela pode ser considerada como autômaton e como tiquê. O autômaton está associado à incidência da cadeia significante e implica o retorno, a volta, (LACAN, [1964], 1979, p. 56) que estão sob o comando do princípio do prazer.
A tiquê tem a ver, por sua vez, com um “encontro do real” “que vige sempre por trás do autômaton e do qual é evidente em toda a pesquisa de Freud que é do que ele cuida” (LACAN, [1964], 1979, p. 56). Sobre o encontro com o real, é preciso que consideremos que ele está alojado onde a “fala oracular” engendra nonsense.
No Seminário 17, o APP é uma referência fundamental. Lacan, retomando o texto freudiano, esclarece que é o saber que faz com que a vida se detenha em direção ao gozo, pois “o caminho para a morte – é disso que se trata; é um discurso sobre o masoquismo –, o caminho para a morte nada mais é do que aquilo que se chama gozo” (LACAN, ([1969-70] 1991, p.16). Portanto, entre saber e gozo trata-se de uma relação originária.
Assim, podemos concluir que a introdução do APP no aparato conceitual tem a ver com o que está para além do PP, mas também com o que se localiza na origem, ou seja, é aquém do PP que o gozo reside. Lacan diz que, “é na juntura de um gozo (que) – deve permanecer opaco–, (…) e é em relação à juntura com o gozo sexual, que surge na fábula freudiana da repetição o engendramento que lhe é radical (…) ” mas é o que dá corpo a um esquema articulado. Em um primeiro tempo temos S1 e o que se repete em S2, e é nessa relação que advém o sujeito. (LACAN, IDEM, p. 16).
Retornando a Freud podemos inferir que ele foi o primeiro a vislumbrar a estrutura do inconsciente e seu vínculo com o objeto pulsional, ou seja, com o gozo. Esta problemática foi aprofundada no texto o Eu e o isso ([1923] 1976), o qual Freud nomeia como complemento necessário ao texto APP, e que introduz a nova tópica, na qual o inconsciente passa a ser nomeado como Es – Isso. Este ensaio assinala o poder da pulsão de morte que atua de forma silenciosa.
Laurent – ao se referir à leitura de Lacan sobre a repetição em Freud – salienta, com propriedade, que é justamente no tempo originário que se produziu a vivência de gozo, das lusterlebnis. Isto acontece “com a inscrição de um traço e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de repetir aquela primeira vez, a qual instala uma série de repetições com uma perda” (LAURENT, 1992, p.17, tradução nossa). Ou seja, o Outro é o lugar onde a experiência de vivência de gozo se inscreve. É curioso que Lacan nomeie isso de discurso do Mestre, trata-se, pois, do discurso do inconsciente.
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Por fim, acrescentamos a afirmação de Miller de que a problemática do último Lacan tem a ver com o fato de que o gozo tem um caráter primário e real ([1995], 2005, p. 119-125). Retomando o título que escolhemos para este texto, podemos reconhecer, aí, os dragões do tempo originário que Siegfried teve que enfrentar e cuja batalha é encenada de forma épica na peça de Richard Wagner, intitulada O Anel do Nibelungo, referência que está presente no texto freudiano aludindo às pulsões.
Concluímos afirmando que o gozo está situado nos primórdios da vida do sujeito e se apresenta no início e no fim da análise, ou seja, ele se situa aquém e além do Princípio do Prazer. Os testemunhos de passes atestam que, no final de uma análise, os resíduos de gozo persistem e insistem. Os passes nos ensinam, cada um de forma singular, que o desafio reside exatamente no “saber fazer” com a opacidade que ainda restou.