Jésus Santiago
No encerramento de O mal-estar na civilização, Freud afirma que o domínio progressivo das forças da natureza e das perturbações da vida coletiva contém germes de destruição e violência, e ele o faz para frisar o diagnóstico da ação corrosiva da pulsão de morte sobre o futuro do gênero humano. As sociedades ditas modernas, longe de poder civilizar completamente a pulsão de morte, resultam de uma mistura instável de tentativas de preservar a tradição, seus valores e suas instituições com esforços para gerar novas ficções e, assim, frear a escalada crescente das pulsões agressivas e de violência.[1] Considerando-se que a pulsão de morte se encontra na base de fenômenos civilizatórios, qual é a política da psicanálise para lidar com ela? A resposta a essa questão pressupõe levar-se em conta o sintoma como signo e deslocamento da satisfação dessa pulsão – tal como faz Miller, em Crianças violentas[2] –, que, por sua vez, induz a uma concepção inédita do laço social. Abro aqui um parêntese, para dizer que a dimensão da política para o psicanalista assume um caráter singular, na medida em que este porta uma concepção do laço social calcada no sintoma, cuja base é a satisfação da pulsão. Tal como o sintoma, o laço social é concebido como a instauração, por meio da linguagem, de certas relações estáveis, produtos da “renúncia pulsional”[3] (Triebvesicht) e, portanto, formas de tratamento de tendências destrutivas da civilização.
Essas tendências destrutivas − violência e segregação − remetem ao que Freud designa como pulsão de morte que, em muitos momentos de sua obra, é tratada segundo uma perspectiva que pode ser designada como ontológica. O próprio Lacan autoriza essa qualificação quando se refere à pulsão de morte como “uma noção ontológica absolutamente fundamental”[4] ao esclarecer que a satisfação pulsional “padece do significante” e, por isso, o mal, ou a tendência à morte, torna-se fator inerente da pulsão. A meu ver, a perspectiva ontológica se impõe para contrapor toda e qualquer abordagem psicológica que enxerga na pulsão apenas o fator quantitativo de mais ou menos excitação desconsiderando a ancoragem da pulsão no desfiladeiro do significante. É segundo esse mesmo viés ontológico que se pode compreender o recurso à filosofia, ao propor que “não podemos ocultar que, inesperadamente, adentramos no porto da filosofia de Schopenhauer, para quem a morte é, afinal o verdadeiro resultado e, nesse sentido, a finalidade da vida”.[5]
Mesmo quando Freud se vale da ciência, mais particularmente da biologia, para fornecer o fundamento último da pulsão de morte, não se pode dizer que toma distancia dessa dimensão ontológica. A morte da qual se serve para nomear a pulsão não deve ser considerada apenas como a morte biológica no sentido do simples retorno do corpo vivo ao seu estado inanimado. Como propõe Jacques-Alain Miller, se a gramática pulsional exige a presença da linguagem, a morte em questão na pulsão concerne ao além da vida.[6] Em outros termos, a abertura do ser falante a esse além da vida apenas acontece em função de sua relação constitutiva com a linguagem. Cabe observar, a respeito desse valor conferido ao corpo morto, o lugar ímpar que a sepultura assume para as civilizações humanas. O que especifica o homem é que sua longevidade não se baseia apenas na realidade biológica, mas, também, no fato incontestável do significante. A vontade do Marquês de Sade inscrita em seu testamento, de que seu nome próprio fosse apagado de seu túmulo, é exemplar de que essa injunção da morte na pulsão é um efeito do significante, e não da realidade biológica.[7]
A ontologia da pulsão de morte
Quanto a essa noção ontológica da pulsão, importa ainda destacar que Freud lança mão de uma concepção do ser, presente na filosofia dos pré-socráticos, para dar fundamento conceitual à incidência da morte no funcionamento psíquico. Precisamente, recorre às ideias de Empédocles de Agrigento, filósofo pré-socrático que propõe a existência de um dualismo entre a philia (amor) e a neikos (discórdia), concebidos como forças pulsionais distintas da natureza, que desconhecem seus efeitos e finalidades. Cabe enfatizar que, em A psicologia das massas e a análise do eu,[8] afirma-se que nessa ação das forças pulsionais no ser individual, “o outro é, via de regra, considerado como modelo, objeto, auxiliar e como adversário”, e, em função disso, pode-se dizer que o sujeito individual se apresenta legitimamente alojado no coletivo e vice-versa.[9] Assim, é esse fato da pulsão de morte ser parte integrante do “trabalho da civilização” (Kulturarbeit) o que, segundo Freud, tornou possível a apreensão desses dois princípios cosmológicos, os quais, apesar de estarem em constante luta, regem os acontecimentos da vida civilizada. Se a philia almeja concentrar em uma unidade as partículas primevas dos quatro elementos – terra, fogo, ar e água –, a neikos quer reverter quaisquer misturas, separando as partículas umas das outras.[10]
A invenção freudiana da pulsão de morte inspira-se, portanto, na neikos de Empédocles, bem como em sua oposição à philia, que se esforça para reunir tudo o que existe em unidades cada vez maiores. A neikos é o que desliga e dissolve as junções das formas antes geradas pela philia. A ontologia da pulsão de morte apoia-se, portanto, nesse dualismo cosmológico, para extrair o que ele denomina “o princípio da discórdia, na medida em que faz equivaler a destruição à pulsão de morte, mais precisamente, à ânsia [Drang] do ser vivente em retornar ao inanimado”.[11],[12] Se a discórdia resulta dessa ânsia, o retorno, então, consiste na própria fonte da pulsão de morte, considerando-se, portanto, que é ele que cria as condições para o surgimento do conflito universal entre Eros e Thánatos.
É inegável que o dualismo pulsional, prisioneiro da concepção ontológica das relações entre vida e morte, nos termos de que “a vida só pensa em morrer”,[13],[14] constitui um pilar essencial para o entendimento de Freud sobre o laço social. Refiro-me a essa concepção pois, nela, se conceitua a pulsão sob o dualismo pulsão de morte/pulsão de vida, como se fossem realidades irredutíveis, distintas e dicotômicas. Desde A direção do tratamento e os princípios de seu poder ,[15] Lacan mostra-se contrário a essa concepção da pulsão de morte baseada na “discórdia entre os instintos de vida e de morte”, cujo objetivo último é sua inscrição em uma teoria do ser. Portanto, não se contempla qualquer dualismo concernente à pulsão, porque busca desontologizá-la, colocando todo o acento no vazio, ou furo, gerado no próprio movimento de satisfação da pulsão. A meu ver, tampouco a considera monista, eliminando um de seus polos, pois, segundo ele, desontologizar a pulsão é, sobretudo, torná-la acéfala com relação a seu modo de satisfação paradoxal.
Vida e morte, designações de duas modalidades distintas da pulsão, não se prestam a captar, por exemplo, o gozo que se faz presente na violência concebida como satisfação da pulsão de morte.[16] Para Lacan, não há diferença entre pulsão de vida e pulsão de morte e tal distinção apenas poderá ser verdadeira se vida e morte forem dois aspectos inerentes a uma mesma pulsão.[17] A ontologia da pulsão formulada nos termos do dualismo é insuficiente para se pensar as relações da vida e da morte com o gozo, e menos ainda para se dar conta de suas implicações na violência como gozo do fator destrutivo do laço social.
Sintoma e “motérialisme” da pulsão
Se a pulsão não se acomoda a dualismo cosmológico algum é porque há, nela, o que Lacan designa “motérialisme”,[18] recorrendo a um neologismo, a meu ver, intraduzível. Ou seja, há, na pulsão, um materialismo da palavra, que impacta o corpo como eco gerado pelo dizer. Se o corpo se mostra sensível a esse dizer, é porque contém alguns orifícios − como é o caso do ouvido, que não se pode tapar ou fechar − e, por esse viés, ecoa a discórdia das línguas, signo maior da inconsistência do Outro. Minha hipótese é a de que apenas se pode sustentar a teoria da discórdia mais além do dualismo pulsional. Em Lacan, a discórdia remete às relações entre a pulsão e o Outro da linguagem − é a discórdia das línguas. Vejamos. A leitura lacaniana da discórdia das línguas é a de que esta não advém do Outro transcendente, como propõe a narrativa bíblica − ou seja, não resulta da punição divina à ousadia dos homens em querer se aproximar dos céus pela construção da Torre de Babel. Não é o Deus Pai quem semeia a discórdia, pois ela é inerente à falta de fundamento ontológico da pulsão. A discórdia das línguas é real, já que se considera que, no trajeto de ida e vinda da pulsão, os atos da fala se fundem no corpo pulsional, mais precisamente no furo que se cria entre a satisfação e o objeto.
A desontologização da pulsão, tal como é apresentada no Seminário 11, emerge com a afirmação de que a pulsão é pura montagem, visto que a satisfação só tem lugar porque apenas “contorna”[19] seu objeto-causa − em outras palavras, a satisfação jamais o esgota ou o elimina. A circularidade da ida e da volta, que, em seu intervalo, produz um furo, é que torna possível afirmar a proximidade de toda pulsão da zona da morte. Não é de espantar que Lacan recuse o dualismo pulsional nos termos da discórdia que se introduz entre a vida pulsional e o Outro. Isso faz com que a “curva da sexualidade”[20] termine em perda − isto é, no ser falante, a presença do sexo está ligada à morte. No próprio engodo em que o ser vivo é induzido à realização sexual, a satisfação faz-se como pura perda do objeto. O materialismo do psicanalista afirma-se, portanto, na discórdia, que se exprime no fato de que toda pulsão é, fundamentalmente, pulsão de morte.[21]
Levar às últimas consequências essa desontologização da pulsão de morte implica assumir que, no gozo tomado como satisfação da pulsão, há um furo ou, ainda, uma afinidade entre gozo e trauma, o que Lacan designa “troumatisme”, recorrendo, mais uma vez, a um neologismo. Interessa-me indagar o que vem a ser o laço social calcado nessa desontologização da pulsão de morte, em que se faz presente a incidência do trauma na satisfação da pulsão. Em outros termos, não é o mesmo que conceber o laço social como efeito primordial do Nome do Pai, como usualmente acontece ao longo da obra de Freud, e expressá-lo pela via do “troumatisme” − tomado como um correlativo da nova definição do sintoma a que fiz referência antes. Portanto, em vez de considerar o sintoma como uma metáfora, substituição significante, retoma-se a definição freudiana, presente em Inibição, sintoma e angústia, que o caracteriza como signo de uma satisfação que não adveio.[22] O sintoma articulado à pulsão perde seu caráter de ponto de basta, anteriormente ancorado no Nome do Pai e nos ideais e crenças a ele relacionados. Se há disjunção entre o pai da realidade e sua função de suporte do Nome do Pai, isso não significa que ele não possa estar associado à angústia de castração e à sua vertente catastrófica. Cotidianamente, a clínica demostra isso. Se o sintoma não se ancora no Nome do Pai, pode-se dizer que a norma neurótica construída sobre o significante da lei do pai perde seu peso preponderante na atualidade da clínica psicanalítica. Constata-se, enfim, que a crença na lei do pai é, sob muitos aspectos, um efeito de perspectiva, prisioneira da relatividade sociológica, em que prevalece a família paternalista. Reside nisso uma falsa evidência que se impõe em um momento preciso da história do patriarcado, que, para Lacan, já se esgotou e se esvaiu.
Do Nome do Pai ao sinthoma
O melhor exemplo da inoperância do sistema patriarcal configura-se por meio da instabilidade do lugar que a interdição passa a ocupar no mundo atual, em que prolifera o direito ao gozo. O delírio da permissividade que se espalha, então, pelos quatro cantos do mundo, nada muda quanto à estrutura do gozo. Aliás, uma vez que a psicanálise se desembaraça do pai e de seu interdito mediante a pluralização dos Nomes do Pai, torna-se mais evidente o fato de que a própria satisfação pulsional, o gozo comporta uma hiância, um furo. Logo não há necessidade de uma barreira, de uma interdição oriunda da lei do pai. Toda a construção de Lacan demonstra que, de alguma forma, a pulsão encontra seus limites nela própria, sem depender da ação transcendente do Outro. Embora traumático, o gozo inaugura, como comemorações sucessivas, uma compulsão à repetição, que jamais se apazigua pela concórdia entre a fala e o corpo.
Retoma-se, assim, a partir de Freud, a clínica do traumatismo, transportando-a para o campo do gozo − a saber, o do impacto de lalíngua sobre o corpo. É o próprio gozo, tese que Lacan desenvolve no Seminário 17, O avesso da psicanálise, que contém um furo e comporta uma parte de excesso que deve ser subtraída. O pai freudiano, como o Deus do monoteísmo – esse universal supostamente pacificador da tendência destrutiva peculiar à vida civilizada –, não passa de vestimenta, de cobertura da entropia disruptiva da homeostase do gozo. Em definitivo, as disrupções e os excessos do gozo não precisam de um pai que os interdite, para encontrar seu regime de funcionamento específico. No fundo, esse funcionamento próprio a cada sujeito confunde-se com o sintoma considerado como via de solução para o impossível de suportar da vida. Não é sem razão que o sinthoma se torna o conceito fundamental da psicanálise.
Trata-se da apreensão do sintoma em sua dimensão singular − isto é, aquela em que se faz signo do deslocamento do gozo em jogo na economia libidinal do ser falante. Nesse caso, o deslocamento do gozo ocorre com a ajuda de elementos que não se conectam ao Nome do Pai. Em outros termos, esses elementos assumem a função de impor limites, propriamente vinculada ao sinthoma, e preservam uma articulação entre a operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. Com efeito, a sintomatização confunde-se com essa função de limitação dos excessos do gozo, visto que é tributária de uma nova acepção do sintoma, submetida à lógica do “Um a Um” e, via de consequência, circunscrevendo-o como exterior às normas vigentes no Outro. É preciso reconhecer que a perspectiva do sinthoma não é apanágio da clínica das psicoses e não tem por objetivo a criação de novas categorias clínicas, mas a busca, em cada caso, da singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.
Modos de gozo e laços sociais
O “motérialisme” da pulsão com o qual o psicanalista lida não só incide sobre a concepção do laço social, mas também concerne, sobretudo, à própria definição do sinthoma. Ao admitir que o sinthoma existe em função do real do furo inerente à satisfação pulsional, Lacan é levado a considerar que a singularidade própria do sinthoma permite vislumbrar a pluralidade de modos de gozo que passaram a povoar o mundo atual. Exatamente em função dessa pluralidade, no Seminário 19, …ou pior, Lacan retorna à questão da discórdia da pulsão de morte por meio da crítica à eventualidade de se poder conceber o Um como um significante fusional de Eros. Ele afirma, a propósito, constituir-se delírio pensar que Eros pode ser fruto de uma união gerada pela libido, em que Dois se fazem Um.[23] Freud institui a discórdia mediante recursos da biologia – o retorno ao inanimado – para, assim, postular a pulsão de morte como tributária de uma ontologia. Lacan, por sua vez, vale-se da lógica, objetivando propor a discórdia como paradigma de que o funcionamento da economia libidinal não obedece a comandos do Outro, pois é marcada por divisões, falhas e tropeços. Pode-se, pois, dizer que Eros é múltiplo e diverso.
Miller chama a atenção para o fato de que, desde muito cedo, ainda em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan aborda o problema espinhoso da discórdia das línguas, com vistas a retirar alguma ideia sobre o caráter e o estatuto do Outro. Afinal, o Outro é completo ou dividido? É consistente ou inconsistente? O curioso é que, para responder à questão do Outro, nesse momento inicial de seu ensino Lacan lança mão tanto da discórdia quanto do saber esotérico, mesmo ciente de que esse saber sempre se manifesta contrário ao psicanalista, que, no simbólico, vê apenas símbolos. Não se trata de dar destaque à simbólica imaginária que atravessa épocas nem às diversas formas de laço social. Miller esclarece que o interesse pelo saber esotérico, como no caso da noção de “eixo”, surge para interrogar a incidência do Outro sobre a ordem do mundo.[24] Em outras palavras, nesse saber, pressupõe-se que o “eixo” cumpre o papel de agir sobre a desordem do mundo, em que predomina a espiral da discórdia, que arrasta cada época para a obra contínua da eterna Babel. Ainda segundo Miller, na resposta de Lacan já se pode antever a função estrutural e intrínseca dessa espiral da discórdia como parte integrante do Outro da linguagem. Em outras palavras, se a linguagem é marcada pela discórdia, o Outro afirma-se incapaz de se constituir um eixo que ordene e unifique o mundo. Enfim, o emprego da narrativa bíblica aponta que o essencial da Babel é a discórdia das línguas, que, por definição, se mostra incompatível com o ideal esotérico de um eixo em condições de atenuar as oposições e tensões do mundo, na busca de, por meio delas, fazer Um. Apenas nesses termos pode-se tomar a discórdia como um dos nomes da pulsão de morte.
A primeira consequência a ser extraída dessa formulação – a da existência de discórdia entre o Outro da linguagem e Eros − é a de que o gozo da pulsão tem sua fonte no trauma. Isso quer dizer que a discórdia pode ser inserida, nesse caso, na vertente do que se conhece como o último paradigma do gozo em Lacan – o da “não relação”.[25] Dessa forma, rechaça-se a ontologia da pulsão pela lógica da não relação, o que requer do psicanalista uma ética do bem-dizer sobre a discórdia, sobre a pulsão de morte. Essa ética do bem-dizer sobre a discórdia é capital na abordagem dos sintomas da civilização − seja a segregação, seja a violência.
A segunda consequência que se destaca de tal orientação é a de que o Um sem o Outro é solitário e, portanto, emerge no lugar do Outro do Outro. Nesse momento do ensino lacaniano, o acento no Um como Um é a verdadeira resposta à circunstância de que o Nome do Pai deixa de ser o único fator de metaforização e ordenamento do gozo. Esse ponto de partida do gozo leva à clínica do sinthome, que comporta a diferença absoluta do Um, do Um sozinho que não se conta e, portanto, apresenta-se radicalmente separado do Outro. Por meio da perspectiva do sinthoma, enuncia-se o chamado gozo do Um, na medida em que se demonstra que o gozo é, fundamentalmente, o Um − isto é, gozo do próprio corpo que dispensa o Outro.
Ainda no início de seu ensino, no já citado Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan mostra-se convicto de que a prática analítica não é viável, sem que o psicanalista alcance a subjetividade de sua época, que se instaura como efeito do real da pulsão de morte, que, como eu disse antes, concerne ao alicerce de toda forma de laço social. As novas identidades e crenças devem, portanto, ser concebidas como formas de suplência do real da não relação entre o Outro e o gozo, sabendo-se que não se pode evitar, nessas formas, a tendência espontânea para o Um que homogeneíza. Se até as novas ficções visam esse Um, o psicanalista, por sua vez, embasa seu ato no fato de que não há universal algum capaz de abrandar o mal-estar da discórdia inerente à pluralidade dos modos de gozo, mal-estar que, em última instância, remonta à hiância traumática do próprio gozo. Em poucas palavras, a não relação confunde-se com o furo, que se constitui a substância do gozo separado do Outro. A propósito, convém ressaltar que, ao longo do último ensino, essa não relação também é tratada com base na ausência da relação entre os sexos, o que acarreta, consequentemente, a estrutura diferencial do gozo fálico e do não-todo fálico. Desde então, pode-se afirmar que a genealogia freudiana de Deus se acha deslocada do pai para o gozo feminino. Melhor dizendo, a partir do momento em que se perde a garantia do fator de ordenação do Nome do Pai, apaga-se a figura de um Deus calcada no pai em detrimento do Deus parceiro do gozo feminino. É bem provável que, nesse deslocamento do pai ao feminino, haja uma pista sobre como responder à questão fundamental, levantada por Miller, em O banquete dos analistas, de que não se deve resignar com a formulação de que a identificação ao significante paterno é a base de operação de todo laço social.[26] A indagação que se formula é a de que é possível se pensar o laço social assentado na proliferação contemporânea do “não todo”?
Eu diria que a Escola de Lacan constitui uma das respostas possíveis à questão concernente às chances de uma contraexperiência, cujo horizonte é a lógica do não-todo e que é contrária a uma instituição fundada no Ideal-do-Eu comum. Desde Freud, sabe-se que essas formas institucionais produzem processos grupais pela identificação dos indivíduos entre si e ao Um, que se apresenta como exceção. Pode-se supor que a questão sobre uma provável contraexperiência desses processos grupais é formulada com o intuito de se dar conta do que é, propriamente falando, o laço social gerado pela Escola. Trata-se de um laço social que rechaça o ideal de “todos iguais” em nome da “adição das solidões”,[27] em que cada um preserva sua singularidade, sem propor uma norma universalisante, que se imponha a todos os outros.