Por Heloisa Caldas
AME – EBP/AMP
Agradeço o convite de Lucíola Macêdo, em nome do Comitê de Ação do Congresso da AMP, e da diretoria da EBP que acolhe a iniciativa de realizar essa mesa sobre o “sonhar em tempos obscuros”, na qual tenho a alegria de compartilhar o assunto com Luiz Fernando Carrijo. Trabalhar esse tema manteve bem desperto para mim o desejo pelo congresso e pelo tema do sonho.
Tiramos então partido do obstáculo temporário à realização presencial do evento para interrogar o sonhar diante do obstáculo em si, na forma da obscuridade do tempo atual. Minha primeira pergunta foi: qual a importância do que obsta, do que faz barreira à pulsão, para que ela passe mais liberta durante o sono, através do sonho?
Pode ser que o obstáculo seja da ordem do necessário. Nesse caso, sem obstáculo não haveria sujeito, desejo, sonho e consequentemente linguagem, uma vez que a palavra em si já atesta o abismo que a separa da Coisa. O prefixo ob, tanto em obstáculo como em obscuro e em muitas outras palavras, aponta ao impossível de olhar, escutar, saber o que, por um lado revela o furo, por outro relança o sujeito. O prefixo ob poderia ser, pelo menos neste contexto, indicativo do despertar como um dos nomes do real lacaniano[1].
Nos tempos atuais encontramos obstáculos à ordem habitual do discurso que alteraram muito o sentido comum no qual dormíamos. Não se esperava um vírus de tamanha virulência – perdoem-me o pleonasmo, mas acho que cabe aqui –, tampouco se esperava o recrudescimento de uma resistência tão forte às conquistas democráticas resultando no desmantelamento de um Estado que se desejaria responsável pelas mínimas garantias dos Direitos Humanos. Menos ainda esperávamos o paradoxal retorno ao mais ultraconservador e ao pior do regime patriarcal e religioso, paradoxalmente aliado a um neoliberalismo selvagem e ultracapitalista.
No plano da subjetividade coletiva, as propostas utópicas de novas invenções de vida, que de certa forma deram alento ao sonho democrático brasileiro nas ultimas décadas, ilustravam a definição aristotélica de que “a esperança é o sonho do homem acordado”. Infelizmente, no entanto, passamos das narrativas utópicas para as distopias totalitárias, como lemos nas ficções de George Orwell, Aldous Huxley e Margaret Attwood.
Então, se a subjetividade coletiva sonha, ela também tem pesadelos. Vivenciamos agora um pesadelo na contramão do que sonhamos com Lennon em Imagine, convocados pelo seu verso “You may say I’m a dreamer, but I’m not the only one” e diferente de uma frustração, pelo fato do sonho não ter se concretizado, como Gilberto Gil cantou “O sonho acabou, quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”, assinalando que sempre vale a pena sonhar e que indica a relevância do sonho para a juventude, sonho do qual, em geral, se desperta parcialmente na maturidade.
O que atualmente vivemos é, no entanto, bem mais crítico e obscuro. Não se parece com um sonho que chega até o umbigo do real e, ainda assim, permite seguir dormindo e sonhando – como pôde fazer Freud após ver a imagem da garganta de Irma, para então alcançar uma fórmula química, ideal de seus estudos de ciência médica. Hoje, os algoritmos nos alcançam, mas não trazem mais promessas e sim ameaças de controle; predominam os pesadelos e o despertar angustiado. Diante da subjetividade que vivemos, talvez seja preciso dormir e sonhar para viver, para fazer frente a tantas mudanças impositivas.
Essa digressão pelos sonhos e pesadelos coletivos, em detrimento do sonho do sujeito do inconsciente, só se justifica porque esse obscuro do tempo atual está presente na vida coletiva e não pode deixar de ter efeitos nos sujeitos, um a um, na medida em que o sujeito é transindividual. Como Jacques-Alain Miller comenta, “o inconsciente provém do laço social justamente porque a relação sexual não existe. Seria possível chegar a dizer que onde a relação sexual é programada, pois bem, não há sociedade”[2]. Isso é o que se apresenta como ameaçador nas distopias.
Como ensinou Freud, o sonho é uma invenção inconsciente que se opõe ao despertar, um dos nomes do real, segundo Lacan. Os tempos obscuros nos despertam a quase todos, mas o real nunca se apresenta o mesmo para todos. Como o que não cessa de não se escrever, o real depende da escrita necessária do sintoma para cada um, aparece enredado pela fantasia, e impede um saber total. Em contrapartida, leva ao saber fazer com isso. E cada um o faz à sua maneira.
A lógica do sonho singular em relação ao sonho coletivo é a mesma que Freud propôs para o trauma. No trauma não importa o que aconteceu na realidade, mas a resposta à experiência de objeto na qual o sujeito foi submetido e da qual ele emerge. O sujeito lê a experiência porque é dela objeto, toma-a como uma escrita e daí advém sua associação de letras, o rébus do sonho, mas também seu sintoma.
As contingências das crises sociais que o sujeito vivencia têm efeitos sobre o sintoma e a amarração de cada um para fazer borda ao seu trauma original. Consequentemente, a subjetividade coletiva dos tempos obscuros mobiliza o trauma singular dos sujeitos. Isso não quer dizer que elas afetam a todos, menos ainda da mesma forma. Nossa lida com o sujeito singular nos demostra isso. Cada um vive as crises coletivas à sua maneira.
Para Freud, inicialmente, a narrativa do sonho indicava a via do desejo mais genuíno do sujeito, posteriormente, ela repetia o encontro traumático original do sujeito e de forma bastante ímpar e infantil, como Lacan comenta, ao dizer – referindo-se a Aristóteles e ao silogismo todo homem é mortal – que “em todo psicanalisante há um sonho de Aristóteles. Mas é preciso dizer que o universal se realiza ocasionalmente na baboseira”[3].
Baboseira que comparece no sonho e também na fantasia para nos defender em parte do real. A fantasia se distingue do sonho porque opera na vigília, como tela e/ou janela, dando ao real um tratamento que o mantém à boa distância, de certa forma velado, separado, mas também acessível dentro do que chamamos de realidade psíquica. Parece que a fantasia trabalha para que se durma acordado, cumprindo a função de manter a vida e defender o sujeito da experiência real da qual foi objeto. Por isso, o sujeito se esforça na fantasia para manter uma boa e devida distância do objeto. Ele deve estar perto do objeto porque este é causa, mas deve guardar relativa distância para não se defenestrar. Então o objeto é, na fantasia, a peça chave para o sujeito viabilizar o sonho da vida de vigília.
Em relação ao sonho no sono, Lacan também dá relevo ao objeto. Em vez de focar a representação, como fez Freud, ele visou à apresentação do objeto a[4]. Então, o uso que se faz do sonho na sessão lacaniana visa mais o objeto do sonho que sua narrativa a decifrar pela via do sentido. Ao contrário de dar sentido, a interpretação serve para situar o percurso da pulsão ao redor do vazio do objeto, de modo a que favoreça o desejo e não o excesso de gozo mortífero. Isso permite distinguir o sonho, guardião do sono quando a presença do objeto é velada, do pesadelo, no qual a presença excessiva e insuportável de gozo implode o objeto inclusive como borda de um vazio, levando à angústia e ao despertar.
Lacan declarou que o sonho lhe interessava pelo que despertava. E nessa via, desloca três teses sobre o sonho e o despertar, como Jésus Santiago destaca bem em seu texto “Não se desperta jamais do sonho”[5]. Inicialmente, na direção da análise, encontramos a tese lacaniana de que “o homem desperta com o psicanalista”; em seguida a de que “o sujeito desperta para continuar a sonhar” e, por fim, a tese de que “não se desperta jamais”.
Miller também frisa que despertar é o desejo do analista[6]. No entanto, por se tratar de desejo, estruturalmente impossível de se realizar completamente, convém sermos modestos com relação ao uso do despertar do sonho, em análise, contando mais com sua parcialidade efêmera.
Pode ser que, em tempos de tanto despertar forçado, a última tese lacaniana de um despertar nãotodo seja conveniente para manejar os sonhos em análise de forma a favorecer o laço entre RSI e contemplar o inconsciente como discurso que os enlaça.
Em outras palavras: se o desejo do analista toma a direção do despertar nãotodo, será que, em tempos tão obscuros, em que o real ameaça a vida, poderia se tomar o sonho no que este permite adormecer em parte, para sustentar a vida?
É marcante a proximidade da morte trazida pela pandemia somando-se a tantas outras perdas, pequenas mortes, como a de empecilhos no trabalho, ganhos, lazer, vida compartilhada, ir e vir, viajar, etc. As notícias nos apontam mais e mais dificuldades e restrições. Morre-se um pouco a cada noticiário! É insuportável tamanho despertar. A pergunta do analista, a cada sonho que lhe endereçam, poderia ser a de como usá-lo em função do que apresenta na via do gozo? Haveria sonhos a serviço do gozo mortífero e outros da sustentação da vida e dos laços?
Os sintomas fóbicos recrudescem, os ritos obsessivos se aferram às normas higiênicas de prevenção, sintomas histéricos se assemelham aos da covid-19 e a paranoia generalizada tece fantasias sobre a veracidade dos dados, sua ocultação, subnotificação, o exagero ou a minimização da gravidade dos efeitos do vírus, o problema econômico, etc. Muitos sonhos e pesadelos gravitam com peças recolhidas desses cenários.
Poderíamos tratar a cada vez, no singular, o sentido do gozo em curso naquele sonho? Não me refiro ao sentido linguajeiro, mas ao sentido do gozo em duas outras acepções: sentido como direção do gozo que alcança o corpo e os efeitos sentidos no corpo. Como Lacan orienta, a interpretação deve ressoar no corpo e nisso será adequada para os dois casos. Despertar, na medida do possível ou, até mesmo, deixar o sonho em seu caráter de ininterpretável.
Um depoimento de um colega de Paris, Jean-Daniel Matet nos ensina sobre isso. Ele nos conta um sonho/delírio durante sua luta contra a covid-19 em uma intempestiva internação na qual precisou ser entubado para respirar. O título que ele deu a este testemunho foi “Convocado!”. Apareceu originalmente em Lacan Quotidien[7], mas foi traduzido e publicado em português em Correio Express[8].
Nosso colega estava em Paris e no hospital em que havia feito sua formação de médico. Mas nada ali lhe parecia familiar. Ao contrário, tudo compunha uma paisagem alienígena, estranha e hostil. Diante de todo esse real, que a fantasia cotidiana não conseguia velar, seu enorme desejo de continuar vivo levou o sujeito do inconsciente a forjar mais que um sonho, um sonho/delírio, como ele mesmo adjetiva, para que se mantivesse a mínima integridade possível do eu, quando o corpo se despedaçava entre odores, sensações difusas e desconexas.
Ele chama esse sonho/delírio de uma neoconstrução, de um sonho a não ser interpretado. Ele narra com detalhes uma sequência de asserções, de traduções em signos do que se passava e que ele lia de forma delirante para sustentar um mínimo de EU que lhe permitisse assumir a situação na qual, como na psicose, ele se encontrava privado de seu corpo.
O termo neoconstrução me chamou atenção. Lembra outros termos relativos aos estudos das psicoses ordinárias[9] – neodesencadeamento, neoconversão e neotransferência – e convida a pensá-lo à luz da topologia e dos enlaçamentos de RSI, inclusive em uma perspectiva transestrutural. Isso provavelmente permitiria uma longa discussão que não cabe e nem me propus a fazer aqui.
Vou me restringir ao ponto que nos interessa: o sonho/delírio, mistura de sujeito a sonhar em associação livre e sujeito a compor a unidade corporal. Nos dois aspectos, o trabalho do inconsciente é a via de acesso, leitura da alteridade, sob pressão de uma urgência ameaçadora. Não é à toa que o sonho/delírio o pressionava a transitar, viajar de volta ao seu país, do qual fora subitamente arrancado.
A pressão temporal em jogo nas circunstâncias desse sonhador me evocou o que Freud aborda em seu curto texto sobre a transitoriedade[10]. Lá ele indica “dois movimentos psíquicos diferentes” causados pelo “naufrágio no perecimento de tudo o que é belo e perfeito”: o tédio ou a objeção à realidade que se impõe[11].
Na primeira forma, encontramos o desencantamento e na segunda a negação. Traçando uma terceira opção, Freud ensina ao jovem, que se queixa da perda e da morte, que a transitoriedade dá valor às coisas belas, pois o tempo, ao escassear a cada instante, confere preciosidade à sua fruição.
Curiosamente, ele promoveu um despertar para o real da morte, que valoriza a fruição da vida, justamente por ela ser efêmera. Em outras palavras: um despertar para a morte como real, o que, paradoxalmente, permite a fruição da vida como um sonho.
Quanto ao luto, quando a perda inevitável advém, Freud comenta ser “um grande mistério, um fenômeno de que não se tem clareza e ao qual inclusive se atribui obscuridade”[12], mas que “transcorre de maneira espontânea” e “caso ainda formos jovens e tivermos vigor, os objetos perdidos serão substituídos por outros tão preciosos ou ainda mais preciosos”[13]. Vejam como para os jovens será importantíssimo sonhar com outro mundo melhor que este que agora nos escapa em naufrágio. É preciso acender a metonímia do desejo para eles e outros que desejem fortemente sobreviver às tormentas atuais.
A experiência radical de obscuridade que Matet enfrentou e compartilhou conosco ensina como se pode sonhar para viver, valorizando a transitoriedade do que experimentava sob a pressa de uma fruição desejante. Muitos dos sonhos que escutamos podem ir nessa direção. Nem todos, obviamente.
Então, sem receita alguma, apenas proponho escutar o sonho, a cada vez, levando em consideração o não todo do despertar que propicia sonhar para viver.