Por Lucíola Freitas de Macêdo
Membro EBP/AMP
Relançamos esta noite o trabalho de investigação em torno do tema do XII Congresso da AMP “O sonho. Sua interpretação, seu uso no tratamento lacaniano”, a partir da descontinuidade incontornável que nos levou a adiar nosso desejado encontro, marcado para abril passado, em Buenos Aires. O que dizer do sonho a partir do “real a céu aberto”, a que o momento nos exorta?[1] Como a experiência própria a este momento, com seus efeitos de desrealização, deslocalização e distopia, tem incidido no trabalho do sonho sob transferência, nestes tempos de sessões online?[2] Como isso tem aparecido na fala analisante?
Como aponta Phillipe La Sagna[3] a propósito do trauma – e que tomamos emprestado para dizer também do sonho – o crucial não é a história, ou a trama de sentidos que se deslinda enquanto se relata o que se sonhou, mas o tempo necessário à apreensão do objeto a, o que somente se faz possível sob transferência, e no âmbito de uma experiência analítica. O après-coup do trauma – ou seja, a reversão temporal que lhe é própria – torna-se legível à medida que o passado traumático “é atualizado pela presença do analista enquanto corpo vivo”[4].
É preciso dar lugar à interpretação como equívoco e como ressonância, para que o real do trauma passe da eternidade de um instante que nunca se tornaria passado, ao acontecimento de um dizer. Nessa perspectiva, não é certo afirmar que haja uma equivalência entre os tempos obscuros e o trauma[5]; e nem mesmo entre os tempos obscuros e os sonhos traumáticos, pois o trauma, desregulando as relações do sujeito com o tempo, reenvia aos “traços de afeto” que não se coletivizam, os mesmos que irrompem como après-coup nos sonhos traumáticos. Acredito que o que é verdadeiramente passível de se coletivizar, e mesmo, de se transmitir desta experiência, seja da ordem dos efeitos, em especial, dos efeitos de enunciação e/ou de criação (no caso das artes e da cultura) que daí possam advir, mais que um horizonte prévio de experiência supostamente comum[6]. Talvez seja mais pertinente pensarmos o sonho a partir da ideia de um “coletivo de solidões”, em que o sujeito está separado dos significantes mestres que o coletivizam, e onde cada um é reconduzido à solidão de sua relação com o ideal, tal como designado por Miller em “Teoria de Turim”[7].
La Sagna adverte, ainda, que “a irrupção do traumático como condição universal no mundo contemporâneo” ocorre no mesmo passo da recusa de seu enodamento à dimensão real e também mais singular do sintoma. Objetando, por fim, a difundida ideia segundo a qual juízos forjados nos âmbitos jurídicos, crítico ou midiático favoreçam o trabalho de luto, pois longe de pacificar as coisas, a linguagem desperta e reacende os primeiros encontros com o gozo traumático.
O título escolhido para o presente “encontro”, subtraído da presença dos corpos, aproxima o sonhar à opacidade, evocada pelo complemento “obscuro”, em ao menos três vertentes distintas.
De um lado, tendo em conta a assertiva de que “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual”[8], o título evoca o obscurantismo reinante em nosso país, onde a catástrofe sanitária é potencializada pelo pesadelo político. Levando em conta as coordenadas postas por J.-A. Miller em “Conferência de Madrid”, de que pensar que a psicanálise apenas como “uma experiência íntima, alheia ao caos, ao mal-estar que prevalece lá fora”[9] seria um erro, lançamo-nos, uma vez mais, no desafio de pensar o campo político a partir do discurso analítico.
A aproximação deste momento ao pesadelo e à catástrofe tem sido recorrentes. Para citar artigos recentes, temos “A morte e a morte”, de João Moreira Salles[10], e entrevistas de Nuno Ramos à Folha de São Paulo e à Revista Época[11], onde “Duplo apocalipse”, “governo do pior”, “haraquiri político”, “banalização da morte”, “degradação”, “demolição”, “destruição”, “indiferença”, são alguns dos nomes encontrados na tentativa de forjar bordas de linguagem em meio à “terra devastada”. Quando se vive em um contínuo pesadelo, é possível dizer ainda que se sonha quando se dorme?
De outro lado, o título remete também ao umbigo dos sonhos. Como aponta Yves Vanderveken, não se trataria aí de um ponto de opacidade prévio ao sentido, de algo que já estava lá, sobre o qual a interpretação tropeça, mas de um produto do trabalho de interpretação, de um resto como ponto de convergência do trabalho interpretativo. Um S1 que não remete mais a nenhum S2[12].
Opacidade presente, ainda, como testemunha Jean-Daniel Matet, em “Convocado!”, no recurso ao delírio como um modo de manter-se ao abrigo da pulsão de morte. Ele esclarece que o que se produziu no período de “desligamento” que durou enquanto esteve entubado tratou-se não de uma formação do inconsciente cuja significação devesse ser interpretada, mas de um delírio como neoconstrução, como “ uma invenção singular e sem Outro“[13], que o permitiu sustentar a vida no estado limite no qual se encontrava: “uma construção, sólida, onde as zonas de perplexidade tentam ser preenchidas por restos de sentido sempre ineficazes. Onde o delírio tentava abrir caminho nesse sujeito privado artificialmente de um corpo”[14].
Chegando-se a este ponto, encontramos todo o alcance da assertiva de Lacan em sua carta a Vincennes, quando afirma que “nada é mais que sonho”, e que “todo mundo é louco, quer dizer, delirante” [15]. Sonha-se à noite e durante o dia, “Não há binarismo entre o sonho e o não sonho”, dirá Miller. Sonha-se de olhos fechados e também de olhos abertos, sendo a vigília a continuação do sonho por outros meios. O que Lacan proclama em seu último ensino é que despertamos apenas para seguirmos sonhando. Se Freud entrou na psicanálise pela via do sonho, Lacan procedeu sua generalização: dizer que sempre se sonha é o mesmo que afirmar que o princípio do prazer não se opõe ao princípio de realidade, ou seja, não é dado afirmar, por exemplo, que o princípio do prazer esteja apenas no sonho, e que o princípio de realidade seja o despertar.
J-A. Miller nos chama a atenção para o caráter fugidio e transitório das formações do inconsciente: o sonho, o lapso, o ato falho e o chiste, fulguram, e em seguida se eclipsam. Entre as formações do inconsciente, a única que se distinguiria por sua permanência é o sintoma. Seu caráter permanente se contrapõe ao caráter fugidio das demais formações, a não ser em uma situação muito precisa: quando um sonho se repete, isto indica um trauma. O sonho recorrente tem o estatuto de um sintoma naquilo que comporta de “mais real”[16].
A referência ao Finnegans Wake de James Joyce é o ponto a partir do qual Lacan formula o sintoma como acontecimento de corpo[17]. É Joyce quem nos mostra que o trauma é aquele da incidência de lalíngua sobre o ser falante[18]. Não se trata aqui do corpo especular, mas do corpo como superfície de inscrição de gozo, cuja irrupção, traumatiza. Um acontecimento eclode em sua “dimensão de surpresa antes que se possa estabelecer o sentido desse encontro”[19]. J-A Miller o aproxima do gozo feminino, sublinhando que “isto pode nos chegar através de um sonho”[20].
A pergunta pelo lugar do sonho nestes tempos infaustos remete também ao que Lacan formula sob a égide dos trumains: “les trumains” advém disso que no ser humano “faz trou” (furo), dirá Lacan, em alusão ao poema The hollow Men (Os homens ocos), de T. S. Eliot, trazido à luz por Miller[21] (no texto de orientação publicado no site do Congresso). Em O momento de concluir, Lacan comenta: – “O curioso é que o homem preza muito a sua condição de ser mortal. Ele monopoliza a morte!”[22]. Ele prossegue, nesta lição, com os trumains, os toros e o furo… discorrendo sobre funerais, múmias e rituais de mumificação, o que permite apontar a uma espécie de generalização, não do trauma, mas do troumatisme, ou seja, do gozo que troumatiza[23].
O que os trumains nos ensinam sobre a relação sonho-trauma? É certo dizer que encontramos, com os trumains, uma última declinação do trauma, no ensino de Lacan? [24]
É sabido que Lacan não situa o despertar, com seu toque de real, do lado da realidade. Mas o que dizer do despertar, quando a realidade se aproxima do real, até quase tocá-lo?