Por Cristina Duba
Membro EBP/AMP
Podemos partir da hipótese de que um livro implica uma escolha, forçada por certo. Não é possível escrever outro livro que não seja o que se escreve. E quantos livros cabem num livro, se comprimem fora dessa escolha, dentro dessa escolha? Uma pequena prisão. Quantos livros se apertam no livro de Igor Mendes, A pequena prisão[1]? A intensa experiência do que foi estar numa prisão pode ser espremida, descascada, amassada, rasgada em muitos pedaços.
Igor Mendes escolheu o depoimento, um relato vivo desses dias de sua vida de jovem militante, determinado a sustentar sua posição ideológica e existencial, que encontrou forma no seu brado “eu sou um preso político”. Da mesma forma, Igor nos mostra como as palavras de ordem, rabiscadas com pasta de dente (para serem lidas? Para não serem lidas, mas escritas, brevemente, para durarem o tempo de uma pasta de dentes, o tempo de serem reescritas?) deu sustentação à situação desumana com que a prisão sempre confina. Nos tempos atuais de confinamento, tivemos uma breve ou vaga notícia disso.
Igor poderia ter escolhido falar dos pontos em que o confinamento beirou o insuportável, os momentos de angústia onde os limites do seu corpo trancafiado foram tocados de forma insuportável (imagino que não foram poucos). Mas escolheu outro caminho, nos propôs, os leitores, a acompanhá-lo nas suas estratégias de resistência, onde o apoio nas identificações, com seus signos de militância, funcionaram, a serviço de sua sobrevivência subjetiva. Não é pouco. Mas não testemunham os pontos extremos, quase impossíveis de dizer, de dizer na beira do lugar que a palavra não alcança. Por outro lado, talvez a contragosto de sua vontade, ou talvez não, impelido por um desejo que o empurrou nessa direção, ocorreu, a meu ver, um efeito que transcendeu suas intenções explícitas.
Um livro tem vida autônoma, guiado por um estranho automatismo, ele diz muito mais do que um autor ou um leitor pode suspeitar, é uma biblioteca infinita, como nos lembraria Borges. Então, acontece que o relato de Igor Mendes dos dias de prisão se desdobra, a meus olhos de leitora, em duas partes, de início entremeadas e que progressivamente se separam, alcançando seu vigor máximo justamente quando relatam o cotidiano, a rotina da prisão e seus personagens. Seus personagens adquirem dimensão no exato momento em que o seu relato ultrapassa a moral e o manual militante, onde precisou se ancorar, como já foi dito, para enfrentar uma dura e imprevista jornada pelas prisões. É quando os clichês não predominam e alguma coisa da vida nua se deixa iluminar e podemos entrever a surpresa e o assombro do autor, o que enche de vida seu relato. Ele nos descreve pessoas inesquecíveis, o que, a julgar pelo breve tempo em que conviveu com elas, nos dão notícia do impacto que lhe causou. Constatamos isso sobretudo nos efeitos de linguagem. E o livro se torna ágil, interessante, há um encontro com o inusitado que os detentos e seus relatos introduz e o autor sabe acolher, sua escrita dá um salto. O jovem heróico, militante determinado e corajoso, a serviço do bem coletivo, universal, se aproxima e então nos faz nos aproximarmos também das pequenas estranhezas, incompreensíveis, enigmáticas que estreitam e afastam homens tão díspares, num lugar que trata de invisibilizá-los, de dissolvê-los em massa.
Vale ainda celebrar a galeria linguística que se produz no espaço de confinamento, para pouco depois ganhar as ruas da cidade e naturalizar-se na nossa fala cotidiana, e no seio das ditas “famílias de bem”, trancafiadas no espaço de fora, como nos aponta o autor, em outras palavras, no início de sua narrativa. O autor assim nos dá a conhecer muitos desses vocábulos que em breve se tornarão familiares.
E não se poderia por fim deixar de festejar o brilhante – e desculpem o mau trocadilho – achado linguístico da “brilhosa”, essa palavra que nomeia para os presos a quentinha de todo dia, intragável, insossa, mas indispensável, a marcar uma rotina que permite que o tempo tenha escansões e não se torne infernalmente infinito, para quem tem anos a cumprir de pena. O achado, servido com arte, foi fazer chegar aos leitores o livro envolto na “brilhosa”, abrigado na quentinha de todo dia, para que, entre outras coisas, concretamente nos lembremos desse intragável que habita o confinamento.