Por Sérgio de Castro
“O século XXI começou com a pandemia!” dirá a antropóloga Lilia Schwarcz em entrevista recente ao canal televisivo CNN. Tal afirmação, com a qual concordamos inteiramente, além de ecoar, nos mesmos termos, com preocupações e constatações que a Diretoria da EBP vem fazendo, nos fez pensar no principal e mais característico elemento deste “início” de século: a migração maciça de inúmeras atividades humanas para a internet e seus recursos. É como se, no estágio atual da civilização, as ferramentas técnicas para tal já existissem e já fossem utilizadas, mas a contingência da pandemia as precipitou numa escala de uso tal que parece se estabelecer aqui uma marca distintiva. E, estamos certos, há algo dessa passagem que não permite que se fale em “retorno”.
A partir da observação da antropóloga, talvez se possa dizer que a pandemia está para o século XXI como o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, esteve para o início do século XX quando, estarrecidos pelo poder de destruição que as novas tecnologias colocaram ao alcance dos exércitos, os soldados que retornavam com vida do front só tinham o silêncio a indicar o indizível horror vivido naquele período! As consequências que Freud logo a seguir tirará de tais eventos foram e continuam sendo decisivas para a psicanálise, exigindo que não percamos de vista a proximidade, nem sempre óbvia, entre a pulsão de morte e o discurso da ciência. Passados mais de vinte anos de disseminação e uso da internet, as otimistas apostas iniciais de que ela tornaria possível aumentar o diálogo e a compreensão entre os seres humanos (um Karl Jaspers teria se deliciado aqui!) parecem não terem se realizado. O que vemos – e nosso país é exemplar em demonstra-lo! – não vai exatamente nessa direção, comprovando o acerto de Lacan ao indicar o quanto a ciência e seus desdobramentos técnicos podem ser mortíferos!
A questão que se colocou abruptamente à Diretoria da Escola a partir da pandemia e com ela as exigências de um isolamento social foi: como prosseguir com o trabalho de transmissão e ensino da psicanálise, como manter vivo e funcionando, seja o múltiplo e as fecundas diferenças e tensionamentos no âmbito das Seções, seja, especialmente, o UM que as enlaça permitindo que chamemos e distingamos a EBP como uma Escola da Associação Mundial de Psicanálise? E mais, na medida em que as coisas se tornavam mais nítidas: não se trataria de escolher entre promover ou não tal passagem para um ambiente de rede e virtualidades, mas de como conduzi-la, onde pudéssemos decidir. Logo ficou claro que havia ali uma escolha forçada e urgente! E deparamo-nos, nesse momento, com um não saber fazer que solicitava invenções, arranjos, compromissos e mesmo rupturas!
No dia 15 de março, iniciamos reuniões quinzenais da Diretoria Geral on-line. Elas vêm se mantendo até então nessa frequência, permitindo que o UM da Escola avance por meio de uma conversação contínua entre as Diretorias das Seções e a Diretoria Executiva, num evidente benefício que os recursos on-line nos trouxeram. Aqui também, ao que tudo indica, não há nem se deseja um retorno apenas às reuniões presenciais e anuais que fazíamos até então. E se as reuniões presenciais da Diretoria Geral continuam sendo desejáveis, elas parecem ser claramente compatíveis com a tática de fazê-las on-line.
Constatamos também que, uma vez que as atividades da Escola deveriam prosseguir, seria importante distinguir as de Seção das de Escola, pensada num âmbito propriamente nacional. Tratava-se de conceber uma estratégia de transmissão on-line onde certas diferenças fossem mantidas, em proveito do UM da EBP. O que de imediato trouxe certas restrições que não deverão ser pensadas apenas no plano da hierarquia. Sendo bastante sumário, decidimos, sempre de forma provisória, visto tratar-se ainda de compreender o que já estava em jogo, que solicitar aos participantes de seminários de Seção algum tipo de inscrição prévia, ainda que apenas para receber um link da plataforma Zoom, seria algo, naquele momento, importante. Já as atividades da Escola, concebidas como nacionais, a exemplo das Preparatórias ao XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, passaram a ser transmitidas também (além da plataforma Zoom) ao vivo, pelo canal YouTube da EBP. Inúmeras questões se colocam aqui, uma vez que produzir algum tipo de borda ao definir estratégias de transmissão seria não nos entregarmos a cantos de sereias que convocam a supostos benefícios do infinito ou do anonimato. Portanto, algum uso da internet – sempre tentando conceber algum tipo de borda – podemos e seguiremos fazendo aqui.
No que diz respeito aos atendimentos on-line, além da questão remeter às disponibilidades e restrições de cada analista, ela nos trouxe e continua trazendo questões que tocam a todos. Não as abordarei nesse momento, uma vez que elas envolvem tal complexidade que seria necessário um espaço próprio dedicado a elas. Os cartéis, que já tinham um histórico de funcionamento on-line, como observamos numa Escola como a NEL, seguem trabalhando e parecem funcionar bem nesse ambiente!
Quanto a uma política do passe proposta pela AMP, a propósito do uso da internet, só podemos concordar com a orientação que nos chegou. O que se transmite nos testemunhos, a delicadeza e a fineza das questões envolvidas, e que remetem ao âmago de nossa prática e da própria psicanálise, exigem uma disponibilidade especial e a presença dos corpos para sermos tocados por ela. Aqui, claramente, nossa intransigente aposta na vida e no que se transmite dela no um por um de cada testemunho demonstram o limite das atividades on-line.
Esse número extra do Correio Express apresenta textos de dois colegas da EBP, Rodrigo Lyra Carvalho e Lenita Bentes onde, a partir de análises de amplo alcance situam questões e propõem importantes reflexões para a Escola e nossa comunidade em geral.
Boa leitura!