Por Rodrigo Lyra Carvalho
A pandemia de Covid-19 produziu uma abrupta interrupção da vida cotidiana e, logo, do funcionamento da Escola. Temos visto que o ensino nas Seções, os Seminários dos membros, as atividades preparatórias dos eventos, as reuniões institucionais, bem como os cartéis vêm buscando, a seu modo e a seu tempo, se adaptar à nova realidade e às ferramentas digitais.
Tenho acompanhado como posso esse amplo movimento, tendo experiências e sensações distintas a cada vez. Sabemos que, quando estamos em meio à tempestade, nos falta o distanciamento para fazer uma leitura ponderada e madura do fenômeno, uma possibilidade que só vem com o tempo e a decantação da experiência.
Ainda assim, me sinto mobilizado pelo fenômeno do uso dos recursos digitais na Escola e pelas impressões que colegas e instâncias têm manifestado a esse respeito. Gostaria, assim, de compartilhar algumas pontuações sobre o tema.
Múltiplas formas
Em uma recente reunião com o Conselho da Escola (sobre a qual tivemos notícias através do Boletim Um por Um #396), o Diretor da EBP, Sérgio de Castro, destacou que será necessário explorar e usar modalidades plurais de transmissão, bem como “encontrar soluções particulares para cada uma das demandas que surgem em função das particularidades de cada Seção”. Não haverá, portanto, uma solução que valha de forma universal e permanente. A cada formato digital escolhido, perdas, ganhos e experiências novas se produzirão.
Em seguida a essa observação, Sérgio de Castro manifestou, segundo o Boletim do Conselho, uma importante preocupação com a possível “dispersão e fragmentação do Uno da Escola”. Embora eu não esteja devidamente informado sobre as múltiplas questões que esse momento ímpar produz na EBP, acompanho um recorte delas no Conselho da Seção Rio de Janeiro, onde temos refletido sobre as orientações fornecidas pelas diversas instâncias da Escola e da AMP, bem como conversado sobre as questões locais. É um debate que me interessa e me convoca.
Durante os dois anos em que atuei como Diretor Secretário da EBP, na Diretoria de Luiz Fernando Carrijo, aprendi na prática o quanto a consistência de nossa Escola é um desafio que exige um trabalho permanente. Poderíamos, de forma esquemática, apontar três dimensões dessa tendência à dispersão. A primeira é uma força inerente ao próprio modo como Lacan concebeu a Escola, cuja vida depende da singularidade de cada um de seus membros. A expressão de J.-A. Miller, “soma de solidões subjetivas” (2016), nomeia com perfeição essa complexidade.
A essa causa, digamos, estrutural da tendência à dispersão, somam-se as circunstâncias históricas do surgimento da EBP e a sua notória realidade geográfica, espalhada como é por esse grande país.
Nesse momento, uma quarta dimensão se faria, então, presente: o uso intenso, por parte dos membros e das Seções, das ferramentas digitais.
Essas dimensões estão completamente entrelaçadas, mas é sobre a correlação entre o risco de “dispersão e fragmentação” e o uso dos recursos tecnológicos na transmissão da psicanálise e no funcionamento da Escola que eu gostaria de refletir, mesmo sem estar, repito, plenamente informado sobre as experiências que estão ocorrendo durante a pandemia.
O discurso universal na era digital
Uma das maiores lições do estruturalismo, da qual Lacan se serviu para combater uma profunda degradação da psicanálise de sua época, é a de que um ser só existe dentro e em função de seu contexto, de suas conexões, de seus Outros. A rigor, aliás, as próprias noções de indivíduo e de coletividade são abstrações imprecisas, que tendem a conceder essência ao que, isoladamente, não existe. A lógica se estende para “seres” coletivos e, portanto, para a Escola: é preciso, sempre e a cada vez, pensá-la e a fazer existir em um certo lugar e em um certo tempo.
Para botar um grão de areia nessa grande tarefa, parto do contundente discurso “Campo Freudiano, Ano Zero”, cuja importância para a Escola dispensa comentários, no qual Jacques-Alain Miller manifestou, ao fim de sua fala, um ponto de mira que nos orienta: “Inscrever para sempre o ensino de Lacan no discurso universal” (Miller, 2017).
A lógica estruturalista de Jacques Lacan também se aplica aqui: ainda que universal, esse discurso certamente não é eterno, nem imutável. Inscrever nele o ensino de Lacan demanda, portanto, que se leve em conta a sua configuração, os seus “modos de uso” em um dado momento da história da civilização.
Pois bem, se há algo que caracteriza o atual discurso universal é, justamente, o fato de ter como veículo principal os meios digitais e o de ser, aparentemente, disperso e fragmentado.
David Weinberger, um notório estudioso da tecnologia, oferece um retrato do estado atual do conhecimento na Internet, que me parece pertinente ao atual desafio institucional:
As redes de conhecimento na Internet não têm forma porque a rede não tem limites externos. Além disso, não permanece estável por tempo suficiente. A forma é importante. Quando o conhecimento era uma pirâmide, quando se baseava em alicerces firmes, compartilhados por todos os membros da comunidade, quando consistia em conteúdos filtrados por autoridades confiáveis, quando sabíamos o que estava dentro e o que estava fora, quando tinha um molde, o conhecimento tinha uma autoridade clara. O aspecto disforme do conhecimento reflete seu revigoramento, mas ao custo de remover os pontos centrais de autoridade em torno dos quais os negócios, a cultura, a ciência e o governo costumavam se orientar. (Weinberger, David. Too Big to Know: p. 110. Basic Books.)
Além de ser uma descrição bastante precisa de nosso tempo, essa passagem interessa por articular um fenômeno eminentemente técnico – a internet – com outro mais vasto, que costumamos chamar, em nosso meio, de fragilização da função paterna.
Por um lado, vemos o andamento de um longo processo civilizatório, que antecede os avanços tecnológicos digitais e é, inclusive, uma das condições para que uma ideia como a da internet pudesse ser possível. Por outro, percebemos que a tecnologia é responsável por produzir com uma rapidez e uma contundência impensáveis as transformações vislumbradas sob a ideia geral de fragilização da função paterna.
É assustador, mas é o estado atual do conhecimento como ele é, com ganhos importantes, aliás, em relação a etapas culturais anteriores.
Essa constatação não deve servir, no entanto, para almejar uma plena submissão à lógica contemporânea. A condição de existência da psicanálise é saber, a cada momento, subverter o mandamento do mestre. Mas, assim como para o psicanalista no jogo transferencial, é preciso estar dentro para que sua palavra tenha força.
Chegamos, então, a uma espécie de paradoxo. Noções como dispersão e fragmentação, que tendemos a enunciar como perigos a serem evitados, passam a poder nomear, também, um modo legítimo de tecer o laço, com o qual precisamos saber fazer. Dito de outro modo, “dispersão e fragmentação” podem ser a primeira impressão que temos quando nossos olhos, acostumados a uma certa forma de enxergar a organização, se deparam com modos inéditos de construir relações. São caminhos instáveis, é verdade, mas não há como participar da circulação dos saberes que impactam a cultura atual caso não aceitemos nos expor a essa experiência dispersa e fragmentária.
Vamos considerar, por exemplo, uma situação corriqueira, porém nova e inquietante para nós: a realização de atividades de ensino digitais abertas a um público ilimitado e, em parte, desconhecido.
Nelas, pode se apresentar, sem dúvida, o caráter nocivo do mundo virtual: pessoas que observam sem se engajar, anônimos que consomem sem se comprometer, os haters que julgam, criticam e condenam pedaços soltos sem tanto compreender. Outros, no entanto, antes inalcançáveis, descobrirão a força de Lacan, ouvirão, irão e voltarão. Pegarão pedaços, juntarão com outros recolhidos em outros campos; novas conexões se darão. Iremos nos expor à polarização degradada, mas também à prática do debate rápido e intenso, à pluralidade de ideias dentro de um mesmo campo. Talvez façamos assim novos parceiros, improváveis, com os quais aprenderemos.
Essa não precisa – nem poderia – ser a única forma de pensar a transmissão da psicanálise, mas me parece que não há chance alguma de “inscrever o ensino de Lacan no discurso universal” se não tivermos, como instituição, a coragem de permitir que essa nova lógica, dispersa e fragmentada, nos ocupe e nos desloque.
Os corpos presentes, e os ausentes
Outra questão aguda diz respeito à presença física nas atividades de transmissão. Sinto que o apontamento dos riscos e das perdas – que certamente existem – tem sido pouco contrabalançado com a observação dos ganhos e das novas possibilidades que se abrem. Temos muito mais facilidade em destacar o esvaziamento que se produz pela ausência do corpo do que celebrar o alcance que as elaborações de cada um agora ganham. Para citar um exemplo, no dia 05 de julho, uma simples atividade de leitura do Seminário 17, promovida pela London Society (NLS) reuniu pessoas de 41 países diferentes… Voilà discurso universal!
Não tenho intenção alguma de argumentar contra a crucial importância do corpo na prática clínica e epistêmica da psicanálise, mas lembro que Lacan nos adverte a procurar o objeto a que é segregado a cada vez que um universal se põe de pé. Nesse caso, penso nos milhares de colegas espalhados pelo Brasil, que perdem acesso à transmissão da psicanálise. Basta que alguém esteja a 20 quilômetros de uma Seção para que encontros formadores se tornem quase inviáveis. Em um país com 8 milhões e meio de quilômetros quadrados e muitas periferias, a exclusão produzida pelo mandamento do “corpo presente” não é pequena… Toca-me, nesse sentido, ler, a cada transmissão da EBP que pude acompanhar, os colegas que agradecem, no espaço dos comentários, a chance que a pandemia lhes trouxe de assistir àquele encontro.
Novas consistências
Em um cenário definido pela força da função paterna, pela lógica do todo, sabemos que a via régia da consistência institucional é aquela descrita por Freud em Psicologia das massas e análise do eu: a dos grupos artificiais, da pirâmide hierárquica, da centralidade das decisões.
Diante de um ambiente cada vez mais não todo, será de extrema importância seguir pensando e criando novos modos de consistência da Escola, para que ela possa navegar pela dispersão sem se dissolver. Esses modos, no entanto, provavelmente não serão exatamente os mesmos que nos trouxeram até aqui e não serão encontrados a menos que aceitemos os riscos que a era digital impõe a quem dela quiser participar.
Pensemos, por exemplo, nas atividades das Seções ou nos Seminários por conta e risco que se restringiam ao público regional e fisicamente presente e agora, subitamente, detonam suas fronteiras, ampliam seu alcance, se nacionalizam e internacionalizam…
Por mais que essa prática altere nosso funcionamento habitual, não poderia ser ela capaz de dar novo vigor ao que se produz na EBP? A absorção de experiências dessa natureza provavelmente exigirá que o próprio sentido que dávamos à ideia de “Uno” bem como os modos de buscá-lo tenham de ser reinventados. A menos, claro, que almejemos apenas retroceder ao status quo tão logo for possível…
Fico, portanto, com essa questão: quais consistências são possíveis em um ambiente fragmentado? Trata-se, me parece, de um verdadeiro campo de investigação, que já vem sendo explorado por pessoas, grupos, movimentos e instituições, que inventam formas de reagir ao desafio imposto pelo não todo com soluções que tenham a força do próprio não todo.
É bom lembrar, aliás, que a Escola criada por Lacan, um visionário impressionante, já foi uma reposta em ato a esse desafio. Seus cartéis, por exemplo, foram inspirados em modos de criar consistência em um ambiente de franca destruição dos universais[1].
Mas sabemos que não é possível descansar sobre um saber já acumulado, pois não tomamos jamais Lacan como letra morta. Tenho certeza de que todos nós nos impressionamos, de quando em vez, ao descobrir novos tesouros escondidos em seu ensino. Quando nos perguntamos sobre nossa consistência em tempos não todos, dispersos e fragmentados, precisamos garimpar os tesouros guardados na ideia de Escola e de seus cartéis, no coletivo que brota de momentos de concluir sempre singulares…
Nesse contexto, o maior risco seria viver a atual imersão tecnológica apenas como um mal a ser atravessado, e não como uma experiência que nos atravessa.