Por Lenita Bentes
Seria a peste a tentativa de equilibrar o sistema, de manter a entropia? A partir de certo ponto, algo novo reage a partir do encontro com uma “verdade” que pretende restabelecer o equilíbrio. Assim se comporta a ciência.
A peste negra ou peste bubônica em 1347 e a gripe espanhola em 1918 decorreriam da nossa incapacidade de gerir de forma competente um ecossistema que se tornou disfuncional?
A paixão pelo lucro exorbitante dos grandes empresários e das instituições financeiras, que nada mais visam que o lucro, produz efeitos que ressaltam a importância reguladora do Estado, quer no aspecto econômico, quer no aspecto social. O “deus mercado” não responde a nada do que vem da demanda social. Gozo parasitário que se alimenta do excedente da força de trabalho. Muitas são as interrogações e, entre elas, o que tem a psicanálise a contribuir no momento em que o desamparo se avizinha com a Peste do Corona vírus? O que do inconsciente passa às práticas sociais? Que atualidade teria o texto de Freud quanto ao mal-estar na civilização ao assinalar as três fontes de sofrimento: a doença orgânica, o outro ser humano e as catástrofes da natureza – ele não se esquivou de dizer que a pior dessas fontes é o outro ser humano1.
O mal-estar a que Freud se referiu no laço social é a violência como efeito das dimensões coletivas do trauma, do desamparo e da violação de direitos fundamentais. Com relação a esses direitos, temos como principal precipitador do mal-estar o Discurso Capitalista que se refere a um gozo sem fim, que o anteparo da fantasia não detém. O sujeito procede de um afivelamento entre a ciência e o capitalismo e, escamoteado pela primeira, o sujeito é afivelado pelo segundo.
A palavra vírus vem do latim e significa fluido venenoso ou toxina. Atualmente, vírus biológico, metaforicamente, é qualquer coisa que se reproduza de forma parasitária.
O mistério que este inimigo oculto nos impõe, essa quase abstração que nos convoca e atinge, torna-o garantidor do real, do sem lei do real que aterroriza por sua impossível inviolabilidade que tem do real na medida em que introduz uma descontinuidade, um impasse, um impossível de simbolizar para o qual adverte E. Morin2: “precisamos estar preparados para o inesperado”, ele virá!
Afetado por uma conclusão inesperada, o sujeito arrisca-se ao ato para deter a angústia, mãe do ato. A variável temporal é crucial no que se refere a uma certeza antecipada. Lacan indica o instante de ver e o momento de concluir, como duas pontualidades que limitam a duração do tempo de compreender3. Esse está comprimido entre o instante de ver, há um vírus de alta letalidade, e o momento de concluir, a produção de uma vacina que torne, outra vez, a vida incerta.
O inconsciente é o próprio real concebido no último ensino de Lacan, como um real sem matema, baseado na desordem trazida pela pulsão de morte, na fala autoerótica que implica o puro gozo assemântico de lalingua, o sem sentido por onde o real se apresenta sem lei. É desse real que a psicanálise se ocupa, conservando-o como insensato, em contraponto à ciência que sempre pretende civilizá-lo pela via dos semblantes4.
É ainda preciso considerar outro aspecto do laço social, a convivência diária e ininterrupta com familiares foi, aos poucos, se tornando incômoda, fonte de acirramento de conflitos que fazem crescer a violência contra mulheres e crianças, levando à morte ou ao exílio no isolamento social. Tal padronização faz eco sobre os corpos em manifestações de angústia que retroalimentam ainda mais as quotas de violência.
Se a impotência carreia angústia, o “fique em casa” tornou-se um imperativo que cria um limite ético diante do coletivo. A contribuição da psicanálise, neste momento extraordinário, é recuperar o que para cada um faz tela ao real e que tem como pano de fundo a angústia.
Milller em seu curso Los usos del lapso diz:
Esse fundo de angústia está ligado a este elemento que Lacan designou objeto “a” para dizer que há ali a inscrição, a presença, a ação, a incidência de algo que está fora do significante e que, por um tempo, nos põe diante do outro, que de todos os modos não existe, inclusive se encontram sua perspectiva sob a forma do Juízo Final. Porém o ato deve fazer-se, é precisamente em um vazio do outro que se inscreve5.
Se somos exilados de nosso corpo é porque há, para cada um e em cada um, um sem lugar a que chamamos sintoma que indica um mal entendido, como pensamentos ou manifestações corporais, como “sinal ou substituto de uma satisfação pulsional que não se realizou,” manifestação do irrealizado.
Lacan, no seminário 23 El sinthome dirá que o sintoma é feito da carência própria da relação sexual. “Exilados é verdadeiramente a aproximação de algo que constitui para ele o sintoma. O sintoma principal é, certamente, o sintoma constituído pela carência própria da relação sexual. Porém é preciso que esta carência tenha uma forma não qualquer forma”.6 Por exemplo, a forma que Joyce dá é a que o ata a Nora, sua mulher. O exílio, nada melhor para definir a não relação. “O sintoma central, claro, é o sintoma feito da carência própria da relação sexual”7. Lacan diz que, no reino de Nora, digamos asilado, ele, Joyce, escreveu: Os exilados ou Os Exílios.8
BIBLIOGRAFIA
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Freud, S. (1930) O mal-estar na civilização, vol 18,Imago Ed, RJ 1985.
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Morin, E. Entrevista concedida a N. Turong para o jornal Le Monde em 24/4/2020.
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Lacan, J. O tempo Lógico e a Asserção da Certeza Antecipada, in Escritos, 1945, Zahar ed, RJ, 1998.
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Cordeiro, F, E. O real da psicanálise escapa a literalização da ciência, PUC Minas, Junho, 2015.
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Miller, J, A. Los Usos del Lapso, 2005, Paidós ed, B Aires, p. 456. Tradução nossa.
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Lacan, J. 1975-76, O seminário livro 23, El Sinthome, B. Aires, Paidós, 2006, p. 68.