Por Marilsa Basso
Um convite para falar “mais ainda” sobre “os cartéis nos tempos atuais” trouxe colegas a trabalho numa atividade da Escola Brasileira de Psicanálise da Seção São Paulo (1).
Na apresentação de meu texto, afirmei que o funcionamento do cartel provoca movimento. Maria do Carmo Dias Batista (2) me interroga o que seria esse movimento. Imediatamente fiquei com o eco do significante que utilizei pensando em como um movimento, termo muito utilizado quando reportamos a um corpo ou um objeto em ação, ou ainda a movimentos políticos, poderia ser sustentado neste contexto atual.
Atribuí várias respostas: a circulação dos discursos, entre membros e não membros da Escola, movimento próprio do efeito dobradiça do cartel, do tema que circula no interior do cartel e com a Escola, do produto que é singular e direcionado à Escola. Mas foi somente um tempo depois que me dei conta do quase óbvio que ali pulsou diante da interrogação.
A palavra, que toca o corpo, circulava em torno de sustentar a causa analítica, não sem pontos de hesitação.
Deveria ter usado circulação ao invés de movimento? O significante movimento parecia escapar do que eu dizia, ressoava como uma nomeação ligada à vida e que, particularmente, me causa.
Para falar dos movimentos da Escola, podemos partir de Lacan quando afirma que o cartel é o “órgão de base” da Escola (3), ou seja, sua estrutura, sua sustentação. Miller (4) traz a “Escola Sujeito” afirmando que ela comporta uma lógica estruturada num coletivo, entretanto, trata-se de um coletivo que segue a lógica do não-todo.
O “Ato de fundação da escola”, de Lacan, foi um momento marcado por um real e provocado por uma posição política que abriu algo novo no destino da psicanálise.
Afirma Lacan: “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica – a Escola Francesa de Psicanálise (…) Para a execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo” (5).
Um ato que propõe um trabalho em torno de uma causa num coletivo que comporta em sua base um funcionamento ímpar.
Podemos rever o ato de 1964 para pensarmos a Escola hoje, na qual – revirados por uma contingência – somos acometidos por um real. Momento que carece posição política e cujos movimentos se apresentam em fenômenos de massa. Por outro lado, um momento que, numa responsabilidade de confinamento, algo do sozinho, não necessariamente do solitário, se impõe.
Que laço é possível em torno de nossa causa comum? Neste momento de isolamento social, como fazer circular o desejo diante desse contexto social que nos causa?
Lacaze-Paule afirma: “A criação de um pequeno grupo de trabalho em torno de uma tarefa a realizar, e não de um ideal, sai do isolamento – não da solidão – e permite a cada um, à sua medida, ali colocar algo de seu, segundo sua relação singular e não coletiva com o ideal” (6).
Há, na Escola Sujeito, um modo de circular: entre o Um e os outros, entre o particular e o coletivo, não sem o que há de singular no Um. Via cartel, a “Escola” não só transmite, mas recebe produção, um dentro e fora, onde o saber circula em sua horizontalidade.
Nohemí Brown esclarece que “(…) trata-se de manter o laço não com um Um que unifica, senão com um Um que preserva a diferença, a dimensão irredutível da solidão com a própria causa, mas que abre as possibilidades de enlaçamento com o Outro, com a Escola” (7).
Do UM ao laço com o outro, com o Outro e com o coletivo. Do Um ao laço com a causa analítica.
Afirma Miller: “(…) a experiência analítica se faz ‘um a um’ e todo movimento é coletivizante” (8).
Nos ensina Romildo do Rêgo Barros: “O passe e os cartéis, pelo menos idealmente, são uma forma de tratamento permanente da Escola, se tenho razão em pensar que são duas subestruturas lacanianas que levam em conta um ponto de fuga que não é o bode expiatório. Uma forma de tratamento da Escola, no sentido de que a Escola somente subsiste, como se dizia na minha geração, como luta permanente” (9).
Nessa mesma atividade da EBP/SP, Rômulo Ferreira da Silva intervém: “Não seria um momento de uma cartelização generalizada da Escola?” Tomo essa colocação como uma provocação que aqui faz eco: um movimento coletivo e político na Escola que se faz importante, sobretudo, nos tempos atuais?
Cuidar dos laços da Escola implica garantir sua estrutura de base, o funcionamento dos cartéis e, num contexto mais amplo, dos modos de transmissão da psicanálise.
O cartel é a estrutura da Escola Sujeito que implica um real que provoca movimento.