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Oleg Gabisov (Karman Verdi), “There are so many ghosts at my spot”
Por Louise Lhullier
Bibliotheke, a palavra grega para uma caixa onde são guardados escritos, traz consigo ao longo dos tempos a ideia de biblioteca como depósito. A tecnologia de informação aponta um futuro em que ela será cada vez menos identificada com um acervo físico e cada vez mais concebida como um centro de armazenamento e difusão de dados por meios eletrônicos. Contudo, mesmo nessa versão virtual, persiste algo da ideia de “depósito”, presente desde o tempo em que caracteres cuneiformes eram gravados em placas de argila. A biblioteca virtual, herdeira dessa ideia, é pensada como um colossal depósito de dados.
Por outro lado, desde a Antiguidade, a história das bibliotecas está associada à pesquisa, à produção de saber e à difusão cultural e artística. Muitas delas foram centros importantes nesse sentido e, em muitos momentos da história humana, serviram de refúgio aos estudiosos, oferecendo o local, os recursos e, sobretudo, o ambiente no qual puderam desenvolver suas ideias e elaborar suas reflexões. Diversas escolas de pensamento nasceram e se desenvolveram nesses lugares que favorecem o laço pela transferência de trabalho, pelo amor à leitura, pela valorização da escrita e pelo debate. Na história humana foi fundamental na resistência ao obscurantismo e à barbárie.
Sustentar uma biblioteca comporta, portanto, uma dimensão política, na acepção mais nobre da palavra, de resistência ao obscurantismo e à barbárie, que precisa ser destacada hoje, ante a multiplicação dos ataques às artes, à cultura e a diversos campos do saber. Esse compromisso orienta o trabalho da Diretoria de Biblioteca, especialmente neste momento de constituição da Seção Sul e de uma crise que perturba profundamente o Brasil e o mundo.
Em 2020, seguimos os temas do XXIII EBCF – O feminino infamiliar. Dizer o indizível – e da I Jornada da Seção Sul – O feminino e os litorais do indizível. Assim, visamos o Uno e buscamos situar o múltiplo, fazendo deste causa e motor de trabalho, presentificando a orientação da Escola na implementação da Nova Geografia da EBP.
O infamiliar, texto freudiano que referencia o trabalho epistêmico da EBP em 2020, parece sob medida para refletirmos sobre o momento atual. Sofremos com a pandemia e com o pandemônio na política, na economia e na vida social. As defesas contra a inevitável estranheza ante essas perturbações não diferem das citadas por Freud: o pensamento mágico, as crenças primitivas, a negação. Nas lives, entrevistas e posts que proliferam nas mídias sociais é possível reconhecer a mesma lógica identificada por Freud.
Na primeira Noite de Biblioteca de 2020, conversamos sobre O infamiliar com um de seus tradutores, Pedro Heliodoro Tavares. Essa nova tradução de das Unheimliche foi caracterizada por ele como “atualização do impossível”, ante o intraduzível da palavra-conceito construída por Freud, o que nos parece também uma forma de dizer sobre a experiência de uma psicanálise. Ao verter um texto para outro idioma o tradutor se depara com o que não cessa de não se traduzir, assim como na associação livre, buscando o bem-dizer, o analisante tropeça com o que não cessa de não se escrever. Nas duas situações, o movimento de atualização do impossível produz efeitos.
Nessa conversa, a biblioteca se fez viva, nas falas que encadeavam polaridades e oposições, ambiguidades e equívocos do significante, e, por outro lado, como efeitos reais da pandemia-pandemônio, a subversão das oposições que estruturavam nossa normalidade pré-confinamento, tais como dentro-fora, público-privado (ou íntimo), casa – rua. Vivemos a infamiliaridade do familiar, ou seu avesso, conforme o disse Pedro, o familiar que pulsa no infamiliar.
Ainda não chegamos ao momento de concluir sobre os efeitos dessa experiência, mas já contamos com alguns aprendizados. Por exemplo, o fato de o trabalho remoto ser a única forma possível de trabalho, tornou irrelevante a localização dos membros no Paraná ou em Santa Catarina. Como só podemos nos encontrar virtualmente, o lugar de nossas reuniões passou a ser uma sala virtual, ou seja, nos reunimos todos no mesmo lugar. Descobrimos que a transferência de trabalho se sustenta sem o suporte material da presença viva, dos locais e dos objetos que compunham os settings de nossos encontros, pois o laço que faz acontecer esses encontros tem a psicanálise como causa.
Não sabemos até quando o ir e vir do nosso movimento de “juntar-se para fazer algo e depois separar-se para ir fazer outras coisas” estará reduzido à dimensão dos espaços virtuais. Aos poucos, a exceção torna-se o novo normal, pois há que seguir vivendo. No litoral, sob o impacto do que não podemos não ver, tentamos compreender. Por isso, talvez mais do que antes, precisamos contar com as bibliotecas.