Por Romildo do Rêgo Barros
“…el fantasma de Amazon es estar seguro que la falta será saturada por un objeto del mercado global, que también será accesible a cualquier hora como el saber en internet.”
(Éric Laurent, Gozar de la internet)
Talvez a expressão mais usual para definir a função do analista, entre os que seguem o ensino de Lacan, seja a de objeto, ou de “semblante de objeto”. O analista faz semblante de objeto. Cada um de nós costuma dizer que o analista não opera como sujeito.
Ou seja, o analista é aquele cuja presença – sua presença, não seu lugar na sociedade – torna possível que surja em cena, ou na cultura, o objeto-dejeto, de certa forma transformado pela vestimenta do semblante. Penso que essa função de semblante atinge, aliás, não somente o objeto, mas também outras funções que se manifestam em uma análise, como de Outro, ou mesmo de sujeito.
Existe, como se pode ver, certa tensão na expressão, entre o objeto – o objeto desnudo, digamos assim, mesmo que isto seja hipotético –, e seu caráter de semblante. Esta tensão pode, naturalmente, se manifestar com uma coloração afetiva, como nos mostrou nossa colega de Buenos Aires, Silvia Salman, há alguns anos, no seu testemunho de Analista da Escola:
Silvia defrontou-se, já para o final da sua análise, com um objeto, representado pelo seu analista, que parece corresponder a esse súbito desnudamento: ela lhe deu o nome de “objeto estranho”, denominação oportuna, meio à la Hofmann, que insere esse objeto na categoria freudiana do Unheimliche, traduzido em português por infamiliar.
É um objeto que surge, não de uma acumulação progressiva de experiências – por exemplo, no transcurso da análise –, mas de repente, como na situação contada no texto freudiano, do senhor que irrita Freud ao aparecer na cabine do trem onde Freud se encontrava, e que, após alguns segundos, é reconhecido como sendo ele próprio, Freud, cuja imagem lhe fora devolvida por um espelho[1].
Lacan comenta, no Seminário O Desejo e sua Interpretação, que o fenômeno do Unheimliche não consiste na simples irrupção do inconsciente, mas provém de um “desequilíbrio”, ou uma “decomposição” da fantasia. Esta questão mereceria uma ampla discussão.
II
A língua, assim como as experiências científicas, as relações sociais, ou mesmo uma escolha qualquer feita por alguém, têm algo em comum: todas produzem dejetos, entendidos aqui como seus resíduos finais, depois de cumpridos seus processos de produção.
Quando perguntamos, portanto, de onde vem tal vocábulo, e citamos tal termo grego ou latino, talvez tenhamos a impressão de que se trata de um processo direto, como uma sucessão.
Na verdade, as palavras se formam ao longo de uma história tortuosa, cheia de encontros surpreendentes e de mudanças nos seus significados, o que faz com que nunca possamos ter, na prática, a certeza absoluta de que tal palavra da nossa língua se origina realmente ou completamente de tal vocábulo, por mais que se pareçam formalmente. Ou então, uma palavra antiga, primitiva, pode ter dado origem a um grande número de outras palavras que, aparentemente, não têm nenhuma relação semântica entre elas.
As palavras, assim como a própria língua no seu conjunto, estão sempre em movimento ao longo do tempo, e vão deixando restos que não são aproveitados explicitamente na produção do sentido. Ou até mesmo conduzem para um sentido oposto ao original.
Na minha experiência pessoal, lembro que na primeira leitura que fiz do Unheimliche freudiano, o que mais me impressionou foi o fato de duas palavras opostas, heimliche e unheimliche, que em princípio deveriam excluir-se, pudessem em alguns casos significar a mesma coisa.
O sentido, portanto, não recobre inteiramente a palavra. A rigor, ele é apenas um dos seus aspectos. Se recobrisse, não existiriam, para citar só dois exemplos, estas importantes produções da língua: a poesia e a ironia, que são maneiras de fazer vacilar a estreiteza do sentido. Tampouco haveria o diálogo psicanalítico, que se dá em um espaço no qual se confrontam em permanência o sentido e os seus dejetos.
Em seu texto que chamou justamente de A salvação pelos dejetos, Jacques-Alain Miller nos explica:
“…a descoberta freudiana (…) foi, como se sabe, primeiramente, a desses dejetos da vida psíquica, os dejetos do mental que são o sonho, o lapso, o ato falho e mais além, o sintoma.”
E, mais para o final do artigo, Miller define o analista de uma forma que me parece definitiva:
“O que os salva (da debilidade, em oposição à paranoia) é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso.”
Esse novo discurso, o discurso do analista, é a maneira de tornar possível um laço social que inclua o dejeto. Se Miller diz que o analista teve êxito nessa operação de “fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso.”, é porque outros, sabendo ou não, fracassaram. Quer dizer, em outros momentos da História, ou mesmo no momento atual, houve e há irrupções do objeto como dejeto da fala. O que há de particular – e sem dúvida inédito – no trabalho do analista, é ter incluído essa irrupção em um laço social. Esta é a grande novidade trazida pela psicanálise, acima do seu caráter terapêutico.
Em outras palavras, o dejeto, se por um lado resiste ao sentido, passa a ser, por outro, um componente necessário ao discurso.