Por Miquel Bassols (ELP-AMP)
Uma pessoa me dizia esses dias: “É como se você despertasse de um pesadelo e percebesse que o pesadelo continua na realidade. E você segue sentindo a mesma angústia”. E outra ainda: “Tenho uma sensação estranha de irrealidade, de estar vivendo num filme, porém, sem poder ler os créditos. Por muito que se fale, me faltam as palavras para saber do que se trata.” São dois testemunhos paradigmáticos da experiência que estamos vivendo estes dias em escala global. A angústia e o sentimento de irrealidade são os dois afetos que mais escutamos sobre uma experiência que nos parece radicalmente nova, porém, que tem, por outro lado, algo estranhamente familiar. É o que Freud definiu como o Unheimlich, o mais estranho naquilo que é o mais conhecido. E assim, as palavras nos faltam para conseguir dizer aquilo que, de tão real, nos parece totalmente irreal, como se houvesse sido retirado de um romance distópico, um romance bem ruim, aliás. E nos vem a todos a imagem do túnel, de como sairemos e do que encontraremos na saída.
Primeira constatação. Quando se escuta um epidemiologista autorizado dizendo que “esta epidemia não é la gorda”[1], começamos a pensar que isso, talvez, não seja um túnel, mas sim o próprio universo exterior onde teremos que viver a partir de agora. Melhor saber disso e não nos deixarmos mais hipnotizar pelos cantos de sereias em nome do progresso. Quanto a isso, todo o mundo parece já estar de acordo: nada voltará a ser como antes.
Segunda constatação. Pela primeira vez é o conjunto da Humanidade – em maiúscula – que se reconhece a si mesmo como um só sujeito diante de um fato real, um perigo do qual não sabe como se defender a não ser em escala global. De fato, já teria que saber disso com a crise climática. Este fato real não é só o coronavírus, mas também tudo que implica a epidemia de crise social, política e de nossas maneiras de viver. É um fato inédito que nos dá a oportunidade única de mudar muitas coisas. Esta Humanidade, como um só sujeito, percebe que tem que fazer agora um cálculo coletivo para, mais adiante, poder sair, que não há saídas individuais. E chega a se perguntar, com razão, se não será ela mesma, a epidemia, frente a uma lei da natureza com a qual não pode mais negociar. Como me dizia um homem do campo: “Tudo o que se tira da natureza, ela te cobra depois com acréscimos”.
Uma má notícia e uma boa.
A má. O que pode estar nos esperando ao final do túnel é a China: controle social a serviço do autoritarismo. Muito eficiente, é verdade, ela já nos vende as máscaras das quais necessitamos como o ar que respiramos. E assim será enquanto o permitirem as servidões voluntárias. De fato, antes de entrar no túnel da epidemia já havíamos feito a experiência.
A boa. Podemos escolher. Se é isso o que teremos que encontrar na saída do túnel, quem sabe não seja melhor ficar ali um pouco mais inventando alguma coisa antes de sair. Podemos fazer isso. E sempre com a liberdade da palavra. Sem ela, o sujeito do desejo nunca poderá existir nem persistir. Com a palavra, sempre com a palavra, “a maneira mais salvadora de mover o corpo”, como dizia aquele outro.