Por Maricia Ciscato
Eis que estamos no “entre”[1]… Entre o nosso conhecido cotidiano não mais acessível – aquele no qual, antes da pandemia causada pela COVID-19, nos servíamos rotineiramente do corpo vivo da cidade, passeando por suas veias, manuseando e fazendo uso de suas variadas células para encontros os mais diversos – e o momento pós o colapso a que, em algumas cidades, já chegamos.
Quando a “curva descer”, sairemos de casa, abriremos o portão, chegaremos à mesma rua sobre a qual tantas vezes encontramos o chão para começar o dia, e, no entanto, ela já não será mais a mesma. Não sabemos o que será, nem quando será. Mas sabemos, como uma certeza daquelas que se fazem nas entranhas, que não será a mesma rua, nem o mesmo chão. Quantos novos muros estarão ali?
É deste “entre”, no entanto, que retiraremos a matéria que nos permitirá seguir. Nele, algo se escreve. E se a experiência de análise me ensinou algo é que o mais precioso do que se escreve não vem do sabido, mas justamente dos balbucios de quando mal se sabe o que está sendo dito ou mesmo lido. Seguir com meio-dizeres e com o esforço cuidadoso de recolher o que nos retorna dessa experiência “entre” não deixa de ser também uma decisão ética.
No tempo
Em um pequeno texto[2] que serviu de matéria para uma conversação recente entre psicanalistas da EBP no Rio de Janeiro, Miquel Bassols lança a imagem de um túnel, no qual estaríamos. Muitos colegas se serviram dela, na ocasião, para tecer seus esboços de leitura. Como alguns desses esboços se decantaram para mim, eu os retomo brevemente. Romildo do Rêgo Barros marcou que o tempo futuro não se apresentará como aquele pelo qual poderíamos apenas aguardar até uma luz ao fim ser avistada, mas pela contingência a se apresentar no próprio túnel e do uso que se fará dela; Maria do Rosário C. do Rêgo Barros fez uso da metáfora de um túnel que se cava, a diferir daquele que simplesmente se percorre; e Cristina Duba, por fim, fez quase poesia: no tempo em que estamos, disse, “só há túnel”.
Entendo, então: um túnel que se cava não no espaço, mas no tempo. Como no apólogo dos três prisioneiros, há aqui um trabalho subjetivo necessário para que se chegue ao movimento que implica o tempo de concluir. Nesse sentido, a saída de que falamos não depende do que será estabelecido a critério de governos ou instituições, mas do que agora se vê, para que se elabore e se conclua, inclusive a partir dos laços que se apresentam.
Trajetos
As palavras dos colegas lançaram-me à imagem dos “oásis” utilizada por Hannah Arendt em seu livro “O que é Política?” – uma imagem trabalhada certa vez por Paulo Vidal e que tanto me serviu quando, há pouco tempo, o mundo ruiu pela primeira vez com o anúncio de que a extrema direita ganharia a presidência do país. Escrevi, à época: “(Arendt) nos lembra que o maior desafio não é o de aprender a viver no deserto – como quer a psicologia moderna –, mas o de produzir e manter oásis em meio ao deserto, não como espaços de ‘descompressão’, mas, pelo contrário, como ‘fontes vivas que nos capacitam a viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele’[3].”[4] Não apenas os oásis políticos, mas também os trajetos a se construir entre eles, se anunciaram, já naquele momento, como ferramentas valiosas. Sem esses trajetos, o risco seria o de fazermos, dos oásis, bunkers[5], isolados[6].
Agora, nesta espécie de segundo fim do mundo – que desta vez chegou de súbito, sem um “primeiro turno” para anunciá-lo –, a imagem dos oásis me retorna, mas de um modo diferente. Passo a lê-los não mais como os espaços político-artístico-analítico a serem mantidos ou construídos e então interligados na cidade por trajetos continuamente criados, mas como o próprio “entre”. Para fazer uso da imagem lançada por Bassols: o túnel, ele próprio, surge como oásis. Ou seja, o “entre” ganha um novo status, não mais apenas o trajeto a fazer ligações, mas a potência de fazermos dele “fontes vivas que nos capacitam a viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele”; muito diferentes, portanto, da configuração de um lugar seguro, limpo e fechado, onde se estaria protegido e no aguardo de melhores dias.
Nele, a possibilidade de abertura da “contingência”. Nele, a possibilidade de invenção de futuros. Nele, os percursos a serem “cavados” para que sejam transpostos os tantos e violentos novos muros que se levantam. Nele, a possibilidade dos deslocamentos internos e dos encontros, tão necessários. Esses últimos, sem os corpos, fato que nos coloca diante de um preço difícil de calcular, mas perante o qual não podemos simplesmente nos abster.
Efeitos de um trabalho de Escola
Nota-se que não pude escrever essas linhas sem constantemente me referir a palavras e ideia de colegas da Escola, ouvidas ou lidas por mim, ao longo deste tempo “no entre”, ou ainda no tempo que existia antes dele. Além dos colegas citados, outros tantos também povoam os espaços entre as palavras que dou a ler. Enquanto fazia o esforço da escrita, pensei em deixar as referências todas em “nota de rodapé”, como se costuma fazer, mas percebi que as palavras que deles fisguei fazem parte da minha própria escrita. Costurá-la com alguns dos nomes talvez pudesse transmitir melhor – calculei – a bricolagem feita aqui, com linhas que me são carnalmente singulares e o efeito que se produz em um trabalho de Escola, tecido no coletivo de um e um e um… entre os quais transmissões e movimentos então acontecem. Um coletivo efêmero, precário, talhado no desejo singular e, por isso mesmo, de vez em vez, pulsante. E não será sem ele, no ponto mesmo em que cada um está de sua formação, que poderemos avançar.