Por Glacy Gonzales Gorski
“No momento encontro-me em uma noite polar e estou à espera que o sol nasça”
(Sigmund Freud – Carta a Karl Abraham – 25 de janeiro de 1915).
Gostaria de dizer algumas palavras e trazer reflexões que foram gestadas a partir do que mais tem me impactado neste momento de quarentena e que compartilho através deste breve escrito que integro ao convite aos colegas para uma conversação à distância.
De forma bastante dolorosa, esta calamidade se abateu sobre o planeta e nos confrontou com a pulsão de morte. Em um primeiro momento – que se configura como um momento de ver – rege a perplexidade acompanhada, muitas vezes, por uma negação dos acontecimentos, seja por parte dos governos, seja por parte dos sujeitos um a um.
As notícias que mais me marcaram têm a ver com o que vem sendo mostrado: o crescente número de mortos e a impossibilidade de um ritual funerário, pois não é viável nem velar os mortos, nem tampouco viabilizar um enterro digno – necessário para o início de um processo doloroso de luto. A dor e o horror se escancaram, e as ruas das grandes cidades agora estão desertas, reina um silêncio sepulcral interrompido pelos aplausos aos profissionais da saúde e, por vezes, pela música que possibilita romper o isolamento e fazer laço com os vizinhos outrora muitas vezes desconhecidos.
Nós assistimos atônitos à devastação ocasionada por este vírus invisível, que não é nem vivo nem morto, mas que, na posse de um corpo humano, se alastra. Diante desse cenário, faltam as palavras de modo que escrever exige, neste momento, um esforço hercúleo; mas, como analistas, somos convocados a um exercício de elaboração.
Diante da página em branco, ocorreu-me oferecer uma contribuição pontual partindo da lembrança de dois textos de Freud, pois neles encontrei um ponto de ancoragem para lidar com o inusitado deste momento e que passo a compartilhar com vocês.
Assim, o primeiro texto que trago foi escrito por Freud, em 1915, ou seja, alguns meses depois da primeira guerra mundial ter sido deflagrada e porta, como título, “Reflexões à altura da época (Zeitgemässes) sobre Guerra e Morte”.[1]
Neste momento, interessa-nos assinalar passagens de suas colocações abalizadas sobre o horror da guerra e as desilusões que ela acarreta. Cito Freud: “Na confusão dos tempos de guerra em que nos encontramos, […] e sem um vislumbre do futuro que está sendo plasmado, […]” [2] nos sentimos em um estado de perplexidade. E, mais adiante, ele afirma ainda que “A própria ciência perdeu sua imparcialidade desapaixonada; seus servidores, profundamente amargurados, procuram nela as armas com que contribuir para a luta contra o inimigo”.[3] Esse é um tema que Freud vai aprofundar em outros textos que merecem nossa atenção, mas que não é nossa escolha neste momento.
Gostaria de destacar, especificamente, as reflexões dele sobre as atitudes dos seres humanos diante da vivência da morte, seja dos combatentes ou daqueles que foram obrigados a se isolar em suas casas.
Freud concluiu que existe uma tendência inegável de colocar a morte de lado, de silenciá-la, pois, no inconsciente, cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade. Cito Freud: “Nosso inconsciente, portanto, não crê em sua própria morte; comporta-se como se fosse imortal.”[4] Segundo ele, é aí que reside o segredo do heroísmo. E se refere, então, à guisa de elucidação, à cena de uma comédia de Anzengruber, intitulada Hans, o quebrador de pedras, na qual o herói zomba do perigo e se desvela mostrando seu convencimento de que nada lhe poderia acontecer.
Gostaria de fazer uma articulação com o que a gente vem constatando em vários países: a dificuldade em reconhecer que a situação é verdadeiramente trágica, e que medidas extremas têm que ser tomadas, assim como o enfrentamento tem que ser uma ação coordenada de forma abrangente. Retornando ao texto freudiano, assinalo que a negação da morte que constatamos hoje com veemência é algo que remonta aos tempos primevos.
Ademais, podemos observar também que, se por um lado a nossa morte é negada, de outro a admitimos para estranhos e inimigos sem a menor hesitação. Os momentos de calamidade – sejam eles provocados pelos humanos através das guerras, ou por pandemias – favorecem o aparecimento de posturas cruéis, injustas e irresponsáveis o que revela, por vezes, o que há de pior no ser humano. Nosso inconsciente se mostra “[…] tão inclinado ao assassinato em relação a estranhos e tão dividido (isto é, ambivalente) para com aqueles que amamos […]”.[5]
No final do texto ele nos oferece uma indicação muito valiosa: “Si vis vitam, para mortem”, ou seja: “Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte”[6]. Que consequências é possível extrair dessas palavras de Freud, no sentido de que sejam efetivas na atualidade?
Por fim, trago como referência importante, um texto que também foi escrito nos tempos de guerra (1915- 1916) onde Freud se reporta às conversas que teve num passeio nas altitudes da cadeia de montanhas, nomeadas Dolomitas, no Norte da Itália, ao lado de um jovem poeta que, segundo historiadores, seria o jovem Rilke. Eles tergiversavam sobre Transitoriedade, título que deu ao artigo escrito em homenagem a Goethe.[7]
De seu texto, extraio a reflexão de que a guerra – a vivência da morte, as grandes perdas que ela acarreta –, assim como a experiência de luto tão frequente em momento de calamidade, obrigam-nos a refletir sobre a transitoriedade. Esse texto tem, como embasamento teórico, suas elaborações realizadas no texto, que, nesta época, já estava pronto, mas que só foi publicado, posteriormente, sob o título “Luto e Melancolia”.[8]
Freud nos surpreende com palavras que têm um tom esperançoso: “Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou […]” [9]. E, mais adiante, diz ainda que “Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito que tínhamos das riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade”[10].
E finaliza acreditando na força vital vencendo a morte e a destruição: “Reconstruiremos tudo […], e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes”[11].
Estamos atravessando um momento de muitas perdas e estragos com as múltiplas consequências para cada sujeito de forma singular; pergunto, então, o que pode a psicanálise e o psicanalista ofertar?
A resposta é: continuar apostando na emergência e na força da palavra para enfrentar e elaborar este confronto traumático com o inexorável, com o real. A fala, a talking cure, parafraseando Anna O., ainda é um poderoso antídoto nesses tempos tão sombrios.