Por Stella Jimenez
J.-A. Miller, na aula de 25 de maio do Curso O Ser e o Um, citando o que Lacan disse no Seminário 23 sobre Adão e a bactéria, comenta: “Tentarei dar sentido ao apólogo que ele (Lacan) apresenta no começo, quando ele evoca a criação dita divina e a história dos nomes que se teriam pedido a Adão para dar às espécies animais. E ele destaca o seguinte: a bactéria não foi nomeada. Pois bem, isso significa dizer que há existências que não têm nome, não têm significante, embora sejam igualmente reais.”
Miller conclui disto que a verdadeira importância do que postulava Lacan era de que havia uma grande distância entre nominação e real, e que, primeiro, há o real, logo, o significante. As bactérias seriam da ordem do real, até serem nomeadas. Uma vez nomeadas, poderíamos até atribuir-lhes um gozo, como nos insinua Lacan na aula do dia 23 de abril do Seminário 22. Ele diz: “Esta pequena sujeira, que vocês olham no microscópio, e que manifestamente se mexe freneticamente, é certo que ela goza; ótimo para a bactéria. Eu me interrogo: será que a bactéria goza?” Mas, mesmo gozando, não é possível atribui-lhe uma vontade de gozar de nós. Nunca poderíamos chamar esse gozo de gozo do Outro
Deparamo-nos atualmente, à diferença da passagem bíblica que teria ignorado a bactéria, com a súbita chegada às nossas vidas de um pedacinho de real, infinitamente menor, ao qual foi designado um novo significante. Um real que nos ameaça com o que chamaríamos de sua implacável voracidade, se pudéssemos lhe atribuir gozos humanos. O Sars-cov-2 escreveu-se de maneira contingente nas nossas vidas — e as modificou completamente.
Como de hábito, o falasser tenta dar sentido ao acontecido, tenta transformar o contingente em necessário. Assim, logo surgem teorias conspiratórias: foram os chineses, foram os americanos; está se tentando eliminar o custo dos idosos, dos pobres, dos inúteis, dos não lucrativos. Claro que alguns governos aproveitam a incidência da pandemia para sua necropolítica, mas isso é um uso oportunista da contingencia. Outra forma de lidar com o contingente é transformar o acaso em determinante: só morrem pessoas de determinada idade, pessoas doentes etc. Mesmo se as pessoas idosas, por ter menor imunidade e sofrer, frequentemente, de outras patologias, tendem a contrair formas mais graves da infeção, já se sabe que podem morrer pessoas de todas as idades. Mas, novamente, a necropolítica mexe seus pauzinhos e a letalidade afeta mais aos pobres que não conseguem serem colocados a tempo em respiração assistida.
Como se fosse uma ironia do destino, num momento em que a ciência e a pesquisa científica estavam tão desprestigiadas, especialmente no Brasil, o mundo fica ameaçado e apela desesperadamente para os pesquisadores e para os cientistas.
A ciência, nos últimos tempos, pela sua aliança com o discurso capitalista, tinha tamponado sua intrínseca rejeição da verdade com o signo do dinheiro que, como o S1 dominante dos tempos, determinava todos os outros lugares dos laços sociais. Podemos pensar que essa aliança espúria contribuiu para o seu desprestígio frente à opinião geral. Se não era mais possível confiar na ciência, se ela se vendia ao que pagasse mais, se o que afirmava rapidamente era modificado de acordo com os interesses pecuniários dos cientistas, por que não esperar novamente respostas junto ao pensamento mágico e à religião?
Mas, mesmo assim, a ciência foi marcando o falasser na sua história, e não podemos negar que sempre teve “a verdade” como uma de suas causas. O problema tradicional da ciência, antes mesmo da deturpação monetária, foi a de sempre se ater à verdade formal, como explica Lacan no seu escrito sobre o tema. Isso faz com que seja sempre incompleta — o que a ciência sempre rejeitou, aspirando poder dar conta de tudo, forcluindo o impossível do saber.
Apesar disso, a verdade mentirosa da ciência sempre permitiu que algo do real aparecesse, à diferença do que acontece com a verdade final da religião e da verdade eficiente da magia. Assim, a ciência foi tocando à humanidade com algo do real da castração, e LOM foi abandonando seus preconceitos e seu desejo de supremacia — sua negação do real da falta — por conhecimentos que o desalojaram de seu lugar almejado de centro: do centro do universo, do centro da criação, da fantasia de ser dono de seus pensamentos.
Muitos governantes atuais se opõem à ciência justamente neste ponto: pretendem fazer o homem voltar a suas satisfações narcísicas, negando o real da castração. Pretendem fazê-lo se sentir novamente o centro, superestimando suas sensações e suas percepções, à diferença do que dizem os cientistas. “Você sente a terra girando sob seus pés? Você vê o horizonte redondo ou plano? Por que você não acredita nos seus olhos e sim nas mentiras dos cientistas, que hoje dizem uma coisa e amanhã outra, dependendo do que for mais conveniente para eles? Eles dizem que o planeta está aquecendo, mas, e você, não sente frio?” É por esse apelo às fantasias do ego que eles conseguem ser tão escutados. Eles próprios, os governantes, aliam o narcisismo aos anelos neoliberais. Para o neoliberalismo, ao contrario do que parece indicar a palavra liberal, é melhor que o falasser fique preso a preconceitos e sistemas religiosos. Dessa maneira é mais fácil manipulá-lo.
Como disse antes, nos últimos tempos a ciência deu pé a seu desprestígio: unindo suas duas fraquezas, a rejeição e a aliança com o capitalismo, vinha dando suporte à destruição da natureza. Ao avanço do desmatamento, à criação de animais em condições que não tenho dúvidas em classificar como selvagens, paradoxalmente falando. Etc., etc.
Se o real fosse uma criatura pensante, poderíamos dizer que se vingou.