Por Cristina Drummond
“não há perspectivas de poder abolir as tendências agressivas do ser humano”
Freud, 1932, “Por que a guerra?”
Há letreiros luminosos nas fachadas dos edifícios,
mas eles não dizem nada.
Tudo está à venda. Tudo é ruína. Tudo é naufrágio
e turbulência de nervos.Ademir Assunção, 2015
Nós, concordando com Freud, assistimos a um tempo em que a luta contra a pulsão de morte se presentifica por todos os lados do planeta. Junto com ela, nossa dificuldade de encontrar maneiras de ler o que se passa nos faz acompanhar as notícias, buscar as novas informações, escutar os pesquisadores, os pensadores, acompanhar as hipóteses a respeito da atuação desse vírus e das distintas políticas públicas por esse mundo afora. As diferenças e as precariedades nos saltam aos olhos. As minorias frágeis se veem ainda mais desprovidas de recursos diante desse real. A violência aumenta, as respostas de solidariedade aparecem de maneiras múltiplas, mas insuficientes diante dessa presentificação da pulsão de morte que a direção política de nosso país, assim como as cada vez mais frequentes politicas neoliberais e antidemocráticas, só fazem alimentar.
Deslocalizados no tempo e no espaço, buscamos encontrar rotinas e meios para tratar desse encontro traumático com uma ameaça de morte que toca a todos. E tal como as crianças diante do enigma do encontro com o gozo sexual, não encontramos, em nosso repertório de saber, uma resposta a esse vazio. E vamos buscando as referências no discurso científico que ainda investiga, experimenta e nos orienta a poder fazer desse vazio um furo no saber. A tão esperada solução da ciência não nos chega e as dúvidas e caminhos vindos das experiências com outras epidemias nos servem de bússola. Vamos inventando maneiras de ir cuidando da vida, sem nenhuma garantia, e maneiras de ir cifrando esse real.
Se não temos um saber, podemos inventar um saber fazer. Mas num pântano irrespirável de paixão pela ignorância queremos fazer valer a política lacaniana. Esse momento nos mortifica e temos vontade de fazer dele um tempo de recreação para lermos os livros que queremos e ver os filmes que não tivemos tempo de ver. É com esforço que retomamos nossas investigações teóricas, pois os atendimentos por internet nos cansam muitíssimo e o manejo do tempo nos custa muita energia. Temos novas tarefas domésticas, nossos filhos e nossos pais nos preocupam. Tanto os que estão perto como os que estão longe. Um esforço para fazer vivas as nossas vidas.
A vida em família não tem sido simples. Escuto dos analisantes a dificuldade em encontrar um espaço para a privacidade, para esse lugar de recolhimento separado do outro. Encontramo-nos separados de nossos vínculos sociais e diante do vínculo subjetivo com nossa própria solidão. A intimidade no espaço familiar não favorece a separação, ela trabalha a favor da alienação e dessa inércia da ignorância. Experiência de encontro com o infamiliar. Uns fecham a porta dos quartos, uns vão para dentro do carro para poder falar com o analista, uns fazem o escritório dentro do closet, as crianças fazem suas cabaninhas. Estar perto demais do Outro materno também causa problemas respiratórios.
E nós analistas lançamos mão de nossas construções teóricas para dar conta de nossa prática nessas circunstâncias. Admiro os que se recusam a trabalhar por vídeo. Infelizmente não posso dar essa resposta. Compartilhamos nossos impasses e nossos achados e isso nos faz respirar. Tal como o tratamento para os infectados, não há respostas universais. Uns preferem o telefone, outros precisam do enquadramento da imagem, uns se recusam a encontrar o analista nesse tempo.
E vamos seguindo, sem muito saber, querendo manter viva nossa aposta na psicanálise que vacila em interessar ao nosso mundo que, apesar de invadido pela angústia, quer encontrar o remédio certeiro. Remédio para voltar à vida cotidiana e ao trabalho, pois o medo de não ter como bancar as contas inferniza a cabeça de muitos que aprendemos a nos inserir no discurso capitalista. Nós analistas trabalhamos com o corpo à distância depois de nosso esforço com Lacan de localizar o sintoma como um acontecimento de corpo e de termos construído a presença do analista, para além de sua inclusão na cadeia simbólica inconsciente, como um sintoma.
Como vai ser atravessar esse tempo? O cálculo de saída coletiva do apólogo de Lacan não nos oferece qualquer garantia. Fazer desses impasses causa de saber é o que vejo em nossa comunidade que se colocou a trabalho para encontrar as maneiras de seguir em nossa orientação política pela psicanálise.
A anedota contada de que Freud, em 1909, teria dito a Jung que estava levando a peste para os Estados Unidos vale à pena ser repensada por nós, pois é nosso dever ético sustentar o poder subversivo da psicanálise em nosso mundo. Miller já nos ensinou que devemos refletir sobre a boa maneira de nos rebelar e da relatividade do impossível de suportar. Há que se poder fazer uso do que já pudemos construir entre nós.