Por Gustavo Dessal
I
“Mais do que surpreender-me pelo que ocorre, surpreende-me o familiar que me parece esta história que, apesar de real, não deixa de ser uma história fantástica”, escreve Daniela Danelinck a propósito daquilo que está ocorrendo com a pandemia do coronavírus (por certo, seu ensaio “Deverias ter vergonha” é um texto que recomendo para entender o mundo: http://www.grupoheteronimos.com.ar/wp-content/uploads/2018/12/Debería-darte-verguenza.pdf).
O “vírus estrangeiro”, rebatizado por Trump e seus seguidores, que sabem (insisto nisso) que o nome das coisas as determina. Aqui, nesta Espanha que não sai de seu assombro, alguns líderes do neofascismo se contagiaram e aproveitam a circunstância para aparecer. Identificam seu corpo com a unidade da Espanha e declaram que, com a força do seu patriotismo, irão combater esse estranho que nos invadiu, como se não tivéssemos o bastante com tudo aquilo que nos invade vindo de dentro. Esses cretinos não são bobos. A equação corpo=pátria é vendida facilmente. Enquanto isso, existem teorias para tudo. Boris Johnson declara a impotência para controlar o vírus e considera que é melhor que os britânicos se contagiem todos de uma vez, assim se gerariam os anticorpos e as medidas que podem afetar a economia seriam evitadas. Uma seleção darwiniana a serviço da sobrevivência da espécie, a espécie do grande capital, claro. Que se salve o mais forte, que por coincidência costuma viver em Kensington. Um vídeo mostra uma impressionante algazarra de macacos em uma cidade da Tailândia. Pela falta dos turistas que costumam lhes dar de comer, eles brigam por um iogurte que um deles encontrou jogado em uma avenida. Entende-se que os macacos nos fascinem: são nosso melhor espelho. Falta-lhes a crueldade para serem quase humanos.
O discurso tecno-científico que se gaba de derrotar a impossibilidade, pouco pode contra este real que explodiu e do qual (Agamben já o advertira) o capitalismo retirará uma boa fatia: uma oportunidade de ouro para que a maioria do mundo se transforme em um gigantesco campo de provas, onde se ensaiem e se aperfeiçoem os métodos de vigilância das populações, o fechamento de fronteiras, o enclausuramento de cidades e a reclusão forçada dos cidadãos. Novos tratados de ética serão escritos: quem salvar em situações extremas? As mulheres e as crianças primeiro é um lema que caducou. Não interessa nem como artigo vintage. Claro que essas medidas excepcionais são inevitáveis. Mas o excepcional tende a tornar-se familiar e, em pouco tempo, cotidiano. Que o fantástico se torne normal, bem poderia ser o imperativo da época. Seria melhor que depois do 11 de setembro não tivessem se estabelecido sistemas de controle nos aeroportos? É provável que não, mas o importante é que a segurança tenha se transformado, além disso, em instrumento de manipulação política. A pandemia é maravilhosa. Satisfaz àqueles que creem que Deus nos manda seu castigo das alturas, e, àqueles que estão convencidos de que o estrangeiro é culpado. Ambas as teorias são verdadeiras. Deus nos manda seu castigo pela arrogância em crer no progresso e o estrangeiro, que todos somos e tossimos para fora, é o responsável pela peste que nos mata todos os dias e que não condiz com sintomas gripais, mas que sai do imenso furo que se abriu em nossa concepção do mundo. Enquanto isso, os italianos confinados em suas casas aparecem em suas sacadas e cantam à vida. Isso também é parte da loucura globalizada e que, em certa medida, existiu sempre. Já o sabíamos pelo Decameron de Bocaccio (também italiano), que o escreveu a propósito da peste bubônica de 1348 e na qual mostrou que – inclusive no limiar do final do mundo – sempre existe lugar para o desejo de viver.
II
“Tardou-se muito mais do que seria necessário, mas, finalmente, os americanos puderam ver o charlatão escondido por trás da cortina”, escreve Peter Wehner em sua coluna para The Atlantic, referindo-se a Donald Trump. O acontecimento inesperado, uma vez mais, pode mudar o curso da história. É por isso que, tão frequentemente, as predições políticas sofram o estouro do real. A pandemia explodiu na cara de Trump e, frente a isso, todas as suas birras e seus Twitters são percebidos cada vez mais como aquilo que são: a manifestação de uma mente alheia, de uma personalidade gravemente transtornada, não somente do ponto de vista psicopatológico, mas, fundamentalmente, moral. Para além de toda consideração diagnóstica, amplamente demonstrada, o gesto obsceno do personagem, sua total carência de escrúpulos e sua completa condição de canalha é já impossível de dissimular. Ignora-se quantas mortes irão ocorrer devido à desastrosa gestão da pandemia, mas talvez seja a sentença de morte desta presidência, ainda que isso também não seja certo. Os monstros nunca morrem totalmente. Seria curioso que o coronavírus tivesse a inesperada propriedade de ser essa espécie de real que desperta a consciência de uma parte do povo americano, aquela que ainda continua sonhando o sonho idiota que irá se transformar em pesadelo.
Mas, para além de Trump e da paradoxal consequência que esta desgraça poderia trazer aos Estados Unidos e ao mundo inteiro, nos encontramos uma vez mais com o fenômeno extraordinário, repetido ao longo da história, de que, sob determinadas condições, certos personagens depravados não somente se transformam em líderes de massas, mas em condutores de toda uma nação rumo à catástrofe. Hitler continua sendo, sem dúvida, o grande campeão deste fenômeno, assim como os alemães e muitos dos seus vizinhos mantêm, até agora, o primeiro lugar em crimes e suicídios coletivos simultâneos no livro Guinness dos recordes.
Hannah Arendt dedicou grande parte da sua vida a indagar este mistério humano e seus resultados mantêm um alcance e uma vigência indiscutíveis. Diante da ascensão do fascismo, Freud e Lacan se viram impelidos a afinar os instrumentos analíticos para decifrar esse fenômeno letal que germina no magma escuro e fétido conhecido com os nomes de: pátria, terra natal ou povo, sendo este último talvez o mais perigoso de todos, em especial pela insólita velocidade com que a sedução de seu emprego pode contagiar.
Agora, temos nos contagiado de amor universal porque, perante a sensação de que o fim do mundo se aproxima, queremos, a partir do nosso enclausuramento forçado, abraçar-nos e dar as mãos. Irmanados em nossa desgraça, confiamos em salvar-nos uns aos outros. É algo comovente e, ao mesmo tempo, inquietante. Qual será o destino de todo esse amor que se está acumulando e deságua em um rio incontido de solidariedade? Não sabemos, mas, enquanto isso, é absolutamente bem-vindo. Sim, sabemos, cabia supô-lo, que a venda de armas nos EUA disparou – e valha a expressão. Talvez porque diante da perspectiva que se delineia sobre o país, o milenarismo que é consubstancial a essa sociedade se prepare para um cenário semelhante ao que descreveu Cormac McCarthy em sua novela “The road”(“A estrada”): cada um defendendo a tiros o possível assalto à sua geladeira e à sua provisão de papel higiênico. Como a maioria das pessoas, me emociono com todas as iniciativas diárias destinadas a aliviar a angústia e a dor de que padecemos. Ao mesmo tempo, me mantenho a uma distância prudente (mínimo de um metro e meio) para prevenir a possibilidade de que nos infectemos novamente de nossa própria condição humana, essa que, cedo ou tarde, nos devolve à realidade. Muitos auguram que isto nos modificará por fora e por dentro, que haveremos de reinventar-nos e seremos melhores. Que este vírus que caiu do céu, como a cor do conto de Lovecraft, será lembrado como aquilo que nos reconduziu pelo caminho do qual nos extraviamos há muito tempo. Quando nos perdemos?
Onde nos equivocamos? Com o capitalismo? Com a queda do Império Romano? Quando crucificamos Jesus Cristo? Em qual ponto o trem da história saiu do trilho e nos levou ao erro que perpetuamos desde então? Possivelmente essas preguntas não têm sentido algum. A história já começou torcida porque é feita daquilo que todos somos feitos. Somos criaturas acorrentadas à força da repetição. Nada se repete da mesma maneira, mas o parecido é assombroso.
Tão assombroso como o amor que todos os dias se soma aos ingredientes da nossa epidêmica loucura.
III
A pequenez de nossa existência pode adquirir dimensões que não havíamos suspeitado antes e, pelo contrário, vidas acostumadas a transcorrer sem limites aparentes tropeçam com uma barreira implacável. O confinamento e as normas de distância social mudaram as regras do jogo, e o isolamento põe à prova os recursos de cada um. Por um lado, a pandemia é um acontecimento político, independentemente da causa que a desencadeou. É um acontecimento político que revela a idiossincrasia das nações, as prioridades que os Estados estabelecem e onde os esforços se concentram. É político porque traz à luz a verdade que se dissimula, se negocia e se corrompe nos organismos locais e internacionais.
“Poderíamos ter uma epidemia paralela de medidas autoritárias e repressivas pisando os calcanhares da epidemia sanitária”, disse Fionnuala Ni Aolain, porta-voz das Nações Unidas sobre temas do contraterrorismo e direitos humanos, em referência aos decretos que muitos países estão ditando, e não é seguro que os retirem uma vez que a catástrofe tenha passado.
É político porque escancara as diferenças socioeconômicas que determinam graus diferentes de sofrimento. Aqui, no suposto Primeiro Mundo, existem crianças e jovens que não podem ter aulas de maneira virtual porque em suas casas não há nem um computador nem um celular. Um vídeo em um bairro pobre da África do Sul mostra a tentativa impossível do exército em conseguir que famílias com dez membros permaneçam fechadas em suas choças de dez metros quadrados feitas com papelão e latões.
A infecção é biológica, mas a pandemia é decididamente política.
O é, porque uma vez mais a classe dirigente aproveita a desgraça para lucrar com o tráfico dos seus discursos oportunistas. Os supremacistas holandeses e belgas consideram que a saúde espanhola e italiana não é um assunto que corresponda à União Europeia. Esse costume mediterrâneo de cuidar dos anciãos é um hábito prejudicial à economia. Silicon Valley nos trouxe a boa notícia que viveríamos 120 anos. Agora Dan Patrick, vice-governador do Texas, estraga nossa festa anunciando que os maiores de 70 anos devem sacrificar-se para salvar o mercado e o sonho americano. Lacan, em referência ao nazismo, falou do sacrifício aos “Deuses obscuros”. Os Deuses atuais não são nada obscuros. São transparentes como a água de antanho (a de hoje em dia, graças à poluição, deixou de sê-lo) e se conhecem com os nomes de Dow Jones, Nikkei, Nasdaq, Ibex 35, para nomear tão somente umas poucas deidades modernas.
Mas a pandemia é também uma experiência que sacode os alicerces mais íntimos de cada um. Assim como um organismo reage de forma imprevisível à ação do vírus, cada sujeito responde fora de qualquer protocolo psicológico estandardizado.
Comprova-se, uma vez mais, até que ponto nascemos, vivemos e morremos confinados no interior de uma realidade virtual que fabricamos à nossa medida e que existe muito tempo antes de que pudéssemos imaginar a invenção da internet. É algo inerente a nossa condição de seres que respiramos uma atmosfera de palavreado. O vírus não somente se alimenta dos nossos pulmões, mas também fagocita o léxico para dizer tanta tristeza: não temos leitos, nem respiradores, nem palavras que possam dar conta daquilo que está ocorrendo. Frente a semelhante escassez, entende-se a proliferação de toda espécie de votos que auguram um novo mundo, uma humanidade regenerada, uma consciência purificada dos excessos aos quais temos nos entregado. Os discursos que chamam para o arrependimento e para a contrição competem com outros que começam a considerar seriamente que poderíamos prescindir de todos os governos e encarregar a Amazon da gestão dos assuntos de Estado: cumprem sempre e entregam tudo a tempo. Não existe nenhuma realidade que não seja virtual, como vimos no Show de Truman, até que o sem sentido aparece por detrás da tela e começa a nos faltar o ar e a fala. A realidade virtual que fabrica o ser falante é a simples e cotidiana amnésia que nos faz esquecer o corpo ao qual finalmente nos reduzimos. Melhor que esqueçamos esse corpo, todo o possível, porque quando ele se manifesta, nunca anuncia algo bom. Não se sabe quando voltaremos a beijar-nos, muitos se perguntam e, se por acaso, com a passagem do tempo, isso não se tornará uma prática definitivamente anti-higiênica, como cuspir ou urinar na rua. Acreditávamos que já havíamos visto tudo, mas não é assim. Por sorte, no Manicômio Global nunca faltam leitos…
IV
Aos doze anos descobri Ray Bradbury e seu conto “All summer in a day”(“Todo o verão em um dia”), que marcou notavelmente minha relação com a literatura. Ainda conservo em minha memória a emoção que aquela história produziu em mim. Li muito ao longo da minha vida, mas esse relato me acompanhou sempre, pela terrível beleza do seu argumento e a assombrosa economia de palavras para contar uma metáfora da condição humana.
No planeta Vênus chove sem cessar. Não é uma chuva qualquer. É uma chuva que obrigou os humanos que exportaram para ali a civilização, a viver em um perpétuo confinamento numa cidade ilhada do mundo exterior. Lá fora, é o som estrondoso da água que sucessivamente faz crescer uma selva infinita, para logo apodrecê-la e mais tarde fazê-la brotar novamente. Dentro, estão os humanos que se habituaram a suportar o ruído incessante da chuva, das ondas que golpeiam furiosas a cúpula de cristal que cobre a cidade. Ocorre – e os cientistas podem predizê-lo com exatidão absoluta – que, a cada sete anos, há um dia e uma hora em que a tormenta crônica cessa e os habitantes dispõem de tão somente duas horas para sair, ver e sentir o sol. Tão somente duas horas. Logo, o céu voltará a se fechar sobre si mesmo ocultando a grande estrela de fogo. Os cientistas, à diferença do que ocorre hoje, sabem. Conhecem perfeitamente a lei que rege esse fenômeno. O argumento do relato é assim. Em uma classe de crianças de nove anos, nenhum deles se lembra do sol. O estudaram na escola, ouviram e leram muitas histórias sobre essa grande moeda de ouro que somente se deixa ver a cada sete anos, viram fotografias e vídeos, mas nenhum deles se lembra o que ocorreu quando tinha dois anos. Nenhum, exceto Margot.
Margot sim se lembra, porque ela chegou do planeta Terra há somente cinco anos, enquanto o resto dos seus colegas nasceu em Vênus. Portanto, ela viu o sol muitas vezes e se lembra muito bem dele. Mas é uma menina autista e sua condição, somada ao fato de que seus colegas não podem suportar que ela se lembre do que é o sol, que possa falar daquilo que se sente sob seu calor, a transformam em objeto de ódio. Margot é a exceção, capaz de falar sobre aquilo que os outros não se lembram. Então o pequeno grupo – que é, definitivamente, a representação da dinâmica da massa – decide trancafiá-la em um armário. Finalmente chega a hora longamente esperada. A professora chama todas as crianças, as agrupa junto a uma das portas que vão para o exterior e, quando o sistema recebe a ordem, a porta se abre deixando que o grupo saia correndo para ver e sentir o sol. O silêncio é tão intenso que as crianças levam as mãos aos ouvidos. Um silêncio que ressoa mais forte que o rugido da chuva ao qual estão acostumados. Os corpos se alegram, se reviram. Todos gritam, cantam, não acreditam no que podem viver. Foram advertidos de que não devem se afastar, são somente duas horas, e por isso mesmo querem vivê-las em toda sua intensidade. As primeiras gotas de chuva anunciam que aquele estranho mundo recobra a sua dinâmica dramática. Correm de volta até a porta de cristal, que se fecha deixando-os ver o céu acinzentado e o retorno do dilúvio. Alguém solta um grito. “Margot”. De repente, se dão conta de que a esqueceram. Todos se olham entre si, angustiados pela cumplicidade que os levou a cometerem um ato de uma crueldade inaudita, e do esquecimento que os irmana em uma culpa compartilhada. Aquele que se lembrou, dá a ordem de ir. Acodem em tropel ao armário e devagar, muito devagar, abrem a porta e liberam Margot. Margot presa na solidão do seu próprio ser. Margot prisioneira da maldade dos outros. Os outros, por sua vez, cativos em um mundo isolado da vida sem freio. Três figuras do confinamento, uma dentro da outra, como no jogo de bonecas russas.
Ao projetar a ação em um grupo de crianças, Bradbury consegue criar uma atmosfera assustadora. Queremos acreditar – precisamos acreditar – que a infância é um território incorruptível que a passagem dos anos e a maturidade destrói e envenena. Mas o ódio, o rechaço e o sadismo dão seus primeiros germens muito precocemente, tanto que nos é insuportável admiti-lo. Uma das tantas razões pelas quais Freud é imperdoável. Hoje, confinados para suportar esta chuva que os cientistas não sabem quando se deterá, penso em Margot. Sempre existe um que assume a exceção do conjunto e, por isso, paga um preço caro. Não somente o amor nos irmana, mas também a culpa. Bradbury leu Freud, e sua maravilhosa recriação do mito de “Totem e Tabu” (no qual os filhos confraternizam pelo pecado que os manchou para sempre) é uma obra que faz parte da literatura imortal. O mundo se torna pouco a pouco um universo de campos de concentração no qual estamos presos. Lá fora, a chuva nos destruiria em um abrir e fechar de olhos. Dentro, podemos destruir-nos entre nós mesmos. Mas a obra de Bradbury sempre acaba encontrando uma saída para a redenção. Ainda que seja tarde, há ao menos um. Um que lembra. Um que assume o dever ético da vergonha e consegue abrir uma porta.