Por Renato Carlos Vieira
Um vírus, o que é?
Um vírus não é o real, muito menos o simbólico e nem tampouco o imaginário. Sem o homem, ele nada mais é do que um veneno inerte. Todavia, do ponto de vista da civilização, cabe interrogar sobre o que pode um vírus em seu encontro com um corpo e suas consequências na organização social dos seres humanos.
Com efeito, o um do vírus não é sem o Outro. Por essa via, é possível interrogar o que o um do vírus pode fazer com o homem e, por conseguinte, com a humanidade.
O estrago provocado pelo Corona Vírus – COVID-19 só se tornou um efeito real a partir da horizontalidade globalizada, característica do laço social contemporâneo.
O real da pandemia é o medo do contágio. Neste sentido, o vírus interfere nos sistemas de defesas do homem, produzindo uma devastação nos semblantes. Ele fragiliza as defesas, tanto do ponto de vista biológico como também do ponto de vista político-econômico. Em outras palavras, fragiliza o corpo biológico e, paradoxalmente, fortalece o poder do Estado na busca de restauração biopolítica e dos demais discursos do semblante. O isolamento de contato social, medida necessária adotada simultaneamente em vários países, certamente não será sem consequências.
Já que as luzes das ciências se ofuscam diante de um novo furo na civilização, podemos indagar que tipo de consequências advém disso? Mais ainda, quais os dispositivos de redução de danos de que dispomos para ganhar tempo e decifrar esse novo enigma?
O que podemos fazer, mais além de uma “reação positiva estatal” a essa atual peste? O que podemos operar a partir desse desconhecido acontecimento?
Aprendemos com Foucault que a peste não tem lei, mas reforça o poder normativo. Todos de quarenta! Com efeito, visando reduzir danos, a pandemia reacende a dialética entre o normal e o patológico.
Neste instante, a vida e a bolsa correm riscos. O poder da biopolítica sobre os indivíduos tende a crescer. O que fazer com isso? Como interpretar os sintomas que advirão pós pandemia?
A rigor, o poder político social nos conduz a pensar que não temos outra escolha a não ser tentar salvar a vida e a bolsa. Mas o vírus está por aí. Ele não circula só, ele precisa de um agente. Esse sim, nos tempos que correm, mostra-se ágil em seu deslocamento.
Lacan, em Lituraterra, nos fala de sua experiência “siberética” quando realizou sua viagem ao Japão. Ele nos diz que experimentou, pela primeira vez, a condição litoral. Entre centro e ausência, entre saber e gozo, concluiu Lacan, há litoral que só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. “É somente a partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta” (LACAN, 2003, p. 21-22).
Com efeito, o que diria Lacan sobre isso que não é o Real propriamente dito, mas que enquanto vírus faz vacilar tudo que é da ordem dos semblantes? Será possível, a partir da psicanálise, constituir um discurso tal que se caracterize por não ser emitido pelo semblante?
Em síntese, o que pode a Psicanálise diante desse novo enigma, não edipiano, mas que nos faz lembrar o enunciado “decifra-me ou te devoro”? Em outros termos, como podemos nos servir da peste Freudiana para decifrar a peste atual e seus múltiplos efeitos? Ao fim e ao cabo, nunca é demais lembrar com Lacan que “o inconsciente é a política”. Talvez esteja aí a diretriz para, nos tempos da peste pandêmica, pensarmos sobre o que é um corpo no inconsciente político e apostar na “psicanálise aplicada à pandemia”.