Por Maria Josefina Sota Fuentes
Na rua, é preciso ler o que nunca foi escrito.
Hofmannsthal
Com a passagem de Lacan pelo deserto da Sibéria, a “planície desolada de qualquer vegetação”[1], ele conclui: “nada é mais distinto do vazio escavado pela escritura do que o semblante. O primeiro é o godê sempre pronto a dar acolhida ao gozo, ou pelo menos, a invocá-lo com seu artifício” [2].
Com efeito, tal travessia instaura um divisor de águas em seu ensino: à beira do real, a letra se desgarra do significante e o inconsciente estruturado como uma linguagem desmorona como um artifício. Lacan experimenta pela primeira vez um inconsciente litoral. Constata-se que, na depressão do solo sulcado pelas águas do rio, há um puro vazio do traço que pode articular-se à palavra que dá sentido ao mundo, mas também soltar-se dos semblantes, desalojar o gozo, arrastando o sujeito ali onde ele não mais se encontra.
Nos tempos do coronavírus, diante da ruína do Outro que não existe[3], os caminhos familiares por onde o circuito pulsional traçava seu destino fazendo circular o gozo nas cidades, nas ruas, agora desertas, tornam-se inóspitos. Com a ruptura do Outro que nos desertou, a cidade mesma pode se tornar o que Éric Laurent chamou de “o império do vazio” [4] – o vazio escavado pela escritura quando perde seu elo com o discurso. Assim, nem fértil, nem litoral, o vazio só amplifica a mudez da Coisa e faz ecoar o silêncio do mundo.
Vazio sinistro
Ao retomar seu primeiro texto sobre os tempos do coronavírus[5], Marie-Hélène Brousse desenvolve em “Ville vide”[6] o tema do vazio a partir do sentimento de estranheza que a experiência da cidade esvaziada pode mobilizar, bastante familiar nos tempos de confinamento.
Mas, como o próprio texto sugere, se o vazio impera na cidade deserta produzindo angústia e o estranho sentimento (intraduzível) do Unheimlich, é porque a experiência na cidade percebida como “infamiliar” atualiza o que Freud chamava de “material inconsciente”. A cidade seria assim menos uma habitação humana e mais a materialização de uma “entidade psíquica” que requer interpretação.
Mas qual inconsciente se atualiza nessa “estranha” experiência vivida na cidade vazia? O inconsciente das divindades noturnas do qual emanariam significações ocultas reveladas com o trabalho de decifração? Sem enunciá-lo, o artigo de Freud de 1919 gravita em torno desta problemática, compondo um vasto canteiro de obras prévio à elaboração do mais-além do princípio do prazer, próprio da virada conceitual dos anos 20. Freud pensava que o Unheimlich estaria ligado ao retorno da angústia de castração edipiana, ou seja, seria um produto do inconsciente que opera pela ação do recalque. Ali, o mais íntimo aparece como algo estranho vindo de fora, produzindo alterações na percepção e o comprometimento da “prova da realidade”, pois justamente os espaços dentro-fora não mais se distinguem, como tampouco o sujeito que, em vertigem, não se reconhece.
Foi necessária a formalização do que Lacan chamou de objeto a e o estudo da topologia moebiana para situar Unheimlich não a partir do inconsciente freudiano estruturado como uma linguagem, mas como “um dos nomes do real em Lacan”[7] – tal como propõe Brousse.
Com efeito, Lacan vai além do pai edipiano e da angústia de castração, adentrando num terreno onde Freud se deteve nas elaborações conceituais. O fenômeno angustiante do Unheimlich aparece, precisamente, quando a obscura intimidade do objeto a – o objeto da pulsão que é por excelência o objeto nada e que permanece velado pelos objetos comuns – sai dos bastidores e surge como uma perturbação na cena do mundo. Quando este objeto deixa de estar articulado ao desejo do Outro, como afirma Brousse, quando a falta relacionada à causa do desejo vem faltar, ele irrompe como “sinal do real” em detrimento do enquadre da realidade e do próprio corpo, cuja imagem se desintegra no imaginário do espelho.
“A angústia é a via de acesso privilegiada ao objeto pequeno a como nada.” [8] Por isto, é quem “dita o luto que tem de ser feito de todos os objetos”[9] – conclui Miller. Assim, revelação e experiência desse nada, a angústia, é a prova de que o homem não se relaciona apenas com os objetos mundanos, mas o situa em relação ao paradoxo de sua própria existência: “o homem na angústia faz a experiência de sua ex-sistência”, experimenta aquilo que “está fora de sua experiência animal e vital”[10].
Deste modo, através da angústia, o homem sente a vertigem de que toda percepção da realidade fica sob suspeita, inclusive a de que a vida poderia não passar de um sonho – ou de um pesadelo, como parece ser o caso nos tempos do coronavírus, do qual não despertamos. Hoje, o flanêur não tem mais como “buscar um asilo na multidão”[11] – como diria Walter Benjamim ao retratar os passos perdidos do poeta em état de surprise que flanava sem rumo pelos descaminhos da Paris da modernidade, em sua leitura do pesadelo que então abatia a Europa. Desalojado do seu mundo nos tempos do coronavírus, ele se asila fora de si, no vazio de sua ex-sistência. Não tem como “ficar em casa” nem “fugir para a rua”, restringindo seu passeio ao circuito pela banda de Moebius, onde o interior e o exterior compõem uma só ausência de saída. Na rua, ele se aprisiona em sua própria geografia.
Irrealidade
Marie-Hélène Brousse ilumina o terreno do mais-além do enquadre paterno, aquele que faz desmoronar o sonho de uma realidade fixa e estável, evocando o texto de 1936, “Um distúrbio de memória na Acrópole”, onde Freud relata outro tipo de transtorno perceptivo, que ele qualifica de “despersonalização”, ocorrido em sua visita à tão desejada Acrópole.
Como poderia Freud ter realizado um desejo, se somente no sonho ele se realiza? É que “cada vez que existe desejo realizado – explica Miller em sua análise sobre o episódio – podemos dizer que existe um efeito de sonho” [12]. Trata-se do efeito que eliminaria, mais-além do mito da castração paterna, o real que arruína qualquer imagem deslumbrante e esvazia o mais-de-gozar do espetáculo do mundo.
Na Acrópole, surge para Freud uma descrença, mobilizada com a interdição de ultrapassar os limites do próprio pai, castrado e bastante humilhado, que jamais pode ir nem levar os filhos a tão sonhada cidade: “o que eu vejo não é real”.
O que Freud vê? Entre a percepção da Acrópole interpõe-se um real que perturba a “prova de realidade”. Trata-se da intrusão na cena do olhar de reprovação paterna, da presença angustiante do objeto a como um sinal de alerta de um perigo real, para-além da castração do pai, que dita o trabalho de um luto que restava por fazer. Aos 80 anos, o homem “velho e empobrecido” que não mais podia viajar, confronta-se com o impossível da vida.
Entretanto, chegado o “Momento de concluir” de Lacan, ele adentra precisamente nesse ponto, como indica Miller, no “espaço estranho, unheimlich, aberto pelo último ensino”[13], quando muitos conceitos psicanalíticos aparecem como uma “duvidosa elucubração de Freud”[14]. É o que leva Miller a afirmar também que a ausência de ponto de basta, um “nada de conclusão”[15] é o que caracteriza o real entendido como a exclusão do sentido, presente nas elaborações finais de Lacan e que terminaram por abalar todos os pilares teóricos erguidos ao longo do seu próprio ensino. Assim, do momento de concluir, “tateando na escuridão”[16], o próprio Lacan não teria encontrado a certeza do ato como saída para os prisioneiros, demasiadamente advertido de que o ser falante não escapa nem da loucura, nem da debilidade do mental.
Contudo, deixou aberto um campo fértil que aloja o vazio necessário para reinventar a psicanálise, um lugar de vida à altura dos tempos do coronavírus, pois, afinal, a psicanálise também é um impossível.