Por Cleyton Andrade
“Ei! Shshshs! Silêncio! O filme já começou!”. Olhamos para o lado e não vemos mais a sala de cinema cheia como antes. Então, como o filme poderia já ter começado? Um sentimento infamiliar. Depois de alguns momentos uma luz… Claro! Streaming. Deve ser de uma dessas plataformas. Contudo não está passando Contágio (Soderbergh, 2011), nem A epidemia (Lars von Trier, 1987), Paris qui dort (René Clair, 1924), Quarentena (John Erick Dowdle, 2008), Guerra mundial Z (Marc Forster, 2013). Nenhum deles. Seria então uma série? Afinal as séries parecem ocupar o lugar das salas de cinemas, onde quer que estejamos. Elas também remodelaram a arquitetura do cinema, agora em casa… o isolamento antes do isolamento. Talvez se trate de The walking dead (11ª temporada), The last ship, The Strain, Pandemic, The last man on Earth. A lista é grande. Mas nem mesmo a tela está ligada.
O dia em que a Terra parou, antes de ser uma música de Raul Seixas, de 1977, é um filme de 1951 que narra a invasão de seres alienígenas. O cinema estimula mais do que as pupilas e ouvidos com invasões de vírus, alienígenas, monstros, titãs, bruxas, vilões que querem destruir o mundo, ataques terroristas, cientistas que criam armas biológicas. Seja através de cavaleiros vindos das Cruzadas, que terão que enfrentar a Peste Negra depois de sobreviverem àquelas, até agentes secretos que lutam para impedir a ação de um vírus chamado Quimera, causador de uma gripe, através do antídoto chamado Belorofonte (Missão impossível 2, John Woo, 2000), o tema retorna. Ou talvez nunca tenha de fato se ausentado. A indústria de games também sabe muito bem qual tema está entre seus recordes de vendagem (Resident Evil, The last of us, Days gone etc.).
Seres mitológicos, ficção científica, mundo Marvel ou ameaças biológicas são formas estéticas, ora de uma negatividade, ora de uma positividade, que ameaçam senão a vida, ao menos um modo de vida, uma racionalidade e, por que não dizer, uma concepção de ética das relações? São formas de experiências de invasão dotadas às vezes de uma razão, mesmo que desarrazoada, e outras como o avesso de um sistema, como algo que, ao emergir, nos paralisa como que diante da face da Medusa.
O clarão que ofusca, aparentemente incompatível com a escuridão da sala de cinema, não vem da tela. Ele vem da lente que parece voltada para nós. Somos nós que estamos sob o olhar da câmera. O filme mudou de lugar. O espectador se vê lançado no interior do filme que antes assistia, como a uma cena distante de sua fantasia. Numa distância segura para que não parecesse sua. Agora o infamiliar se sobressai. A vida não repete o filme. O filme lembrava e atualizava diversas imagens, fantasias e modos de sofrimento, modos de aterrorizar. Carregado de afeto, nos tomava pelo afeto. Enlaçados e aparentemente seguros, os sujeitos poderiam se valer disso, cada um na sua medida. Agora, a câmera do cinema está voltada para o lado avesso da tela. Isso assusta porque confere a terrível experiência de encontrar na realidade aquilo que sempre se sonhou na fantasia. Esse terror é independente da potencialidade viral, mas se vale dela.
A Ilíada, de Homero, que mais poderia se chamar “A ira de Aquiles” diz menos da Guerra de Troia, dos gregos contra troianos, e mais das consequências trágicas das escolhas, desejos e atos de Aquiles, sobre ele mesmo. Ele é o herói trágico que paga com o próprio corpo a impossibilidade de síntese. As viagens de Gulliver de Jonathan Swift, uma sátira pessimista e mordaz, revela um jogo de perspectivas onde ora se vê a pequenez no outro, ora se é tão pequeno que se torna impossível escapar a escatologias dos organismos perecíveis, ora se interroga o que sustenta uma ética das relações mascarada por pequenos hábitos sórdidos.
Mobi Dick, de Herman Melville, retrata o expansionismo norte americano e sua consequente implicação na escravidão, sobre a relação com o outro e, sobretudo, um certo conceito de outro. Grosso modo, a história da mobilidade e da expansão é a história das relações éticas entre os homens. Esse romance descreve a desventura do capitão Ahab num navio baleeiro – base da economia num período pré-petroleiro – na sua caça a uma baleia. Mas isso não mereceria um romance, afinal, na economia, a baleia é uma mercadoria, é apenas o óleo que se extrai dela. Mas reside aí o ponto de virada. O que era para ser um mero objeto a ser caçado, dominado, consumido, torna-se algo que resiste às condições de representabilidade. Tal negatividade a inscreve numa positividade que lhe confere um nome próprio que a distingue das baleias. Moby Dick, Quimera, Covid-19, nomes que pela negatividade que produzem na experiência, credenciam uma perturbadora positividade. Moby Dick é branca, como nenhuma outra. Há uma lei que rege as baleias, elas são caçadas, são mercadorias, óleo.
Essa, por não se deixar apreender por tal lei, deixa de ser aquilo que parecia ser. Merece um nome e a cor branca, pela potência de tirar Ahab de seu lugar, por perturbar a sua relação com o desejo e com os laços sociais. Ele se identifica com o objeto de sua própria fantasia, é vítima da baleia branca na mesma medida em que não sabe mais como diferenciá-la daquilo que ele mesmo é. A baleia, familiar, na sua alva emergência é o Infamiliar.
A baleia que não se deixa matar pelo baleeiro ao mesmo tempo em que é sua real ameaça de morte é a expressão trágica de um impasse. De onde vem esse terror? Vem de fora? Ou vem de si mesmo? No caso de Arab, vem de ambos. Freud já nos dizia que para o que vem de fora temos defesa, enquanto que, para o que vem de dentro, não. O que vivemos é a contratura trágica de ambas. Vemos do lado de fora a atualização daquilo em torno do qual, por vir “de dentro”, não temos defesa. Pois o trabalho agora é de construirmos… não só defesas, mas também como fazer um bom uso possível disso tudo. Inclusive criar, cada um a seu modo, um nome para o seu Belorofonte.