Por Marie-Hélène Brousse
Esse segundo texto se impõe como prolongamento do precedente (1), constituindo uma espécie de crônica dos tempos do coronavírus que se concluiu no vazio.
Saí às ruas da cidade em que habito para fazer algumas compras munida de minha autorização para sair. Um sentimento, que se pode qualificar de “bizarro”, invadiu-me, então. Eu havia recebido, anteriormente, um vídeo de Veneza, vazia; ecos de Nova York, parada. E agora, Paris, vazia. Todas as ruas em volta, vazias; as praças, vazias; as perspectivas, vazias. Que sentimento de estranheza!
De volta ao meu confinamento, deixando-me guiar pelas palavras, reli, então, “O infamiliar”, “Das Unheimliche”, que está entre os textos de Freud que são um pouco à parte, pois se situa entre dois momentos da elaboração da teoria analítica.
Uma experiência perigosa
O vazio da cidade a torna Unheimliche. Esse termo tem, em francês, uma tradução infiel; sua tradução em inglês, de James Strachey, The Uncanny, tampouco é fiel. Em suma, Unheimliche é um impossível da tradução. Tenhamos em memória que o impossível é, sob essa forma, o primeiro traço que caracteriza o Unheimliche, e observemos que é também um dos nomes do real em Lacan.
Unheimliche surge na escrita de Freud já em 1911, em sua correspondência com Ferenczi, que lhe conta uma de suas experiências de premonição. O nome de um desconhecido lhe ocorreu sendo que ele não conhecia nem a pessoa nem o seu nome; Freud responde que considera essa história “unheimliche schön”, mas pensando no desvio de Jung, acrescenta: “é uma experiência perigosa na qual não quero te acompanhar”. Ele termina sua carta por: “Eu te saúdo, você, o estranho inquietante”. Alguns anos mais tarde, em 1919, pouco antes da morte da sua filha querida, Sophie, durante a epidemia de gripe que teve início em 1918, nos Estados Unidos, ele escreve Das Unheimliche para a revista Imago. Unheimliche coincidência a respeito da epidemia que nos põe à prova.
Variantes do Unheimliche: uma experiência freudiana
“Das Unheimliche” é um artigo curioso. Nele, Freud aborda a noção inerente a essa palavra própria à língua alemã por três vias: pelos dicionários, pela história do próprio termo na língua alemã; pela literatura, na obra de E.T. Hoffmann; e, finalmente, por sua própria experiência clínica (autoanálise) do fenômeno clínico em jogo (2), principalmente em dois fragmentos clínicos.
A primeira vem em apoio ao “fator de repetição não intencional”. Ela mostra Freud flanando pelas ruas de uma cidadezinha italiana e, em seguida, apressando-se para deixar a rua em que se encontrava após ter constado que era a região dos bordeis, mas voltando ali, sem se dar conta, por três vezes. Arrastado para o sexo sem se dar conta, ele é tomado, então, pelo sentimento de Unheimliche. A segunda via, que se encontra em uma nota, relata a sua experiência “sozinho em um compartimento de vagão-dormitório”, vendo “um senhor mais velho, de pijama, com o boné de viagem na cabeça” adentrando em sua cabine. “Logo reconheci, perplexo – escreve ele – que o invasor era a minha própria imagem refletida no espelho da porta intermediária”. O fator em jogo aqui é o duplo que vem perturbar o que Freud chama “a prova da realidade”. Nessas duas experiências, o ponto comum – que, aliás, Freud não ressalta – é essa báscula da dita “realidade” diante do retorno do mesmo, a partir de alguma alteração desse mesmo.
Nos dois casos, o equívoco permite dizer que ele não se reconhece ali.
Três partes e um percurso: do Unheimliche ao Entfremd
Primeiramente, Freud cita in extenso os diferentes sentidos repertoriados de heimlich no dicionário de língua alemã de D. Sanders (1860). Heimlich remete ao que é familiar, na medida em que faz parte da casa ou da família, doméstico (no sentido de um animal doméstico), caro, íntimo, acolhedor, alegre [gai], sereno, mas também ao que é escondido, dissimulado. Freud observa que dentre todas essas “nuances no significado” da palavra heimlich, “uma delas aponta para a coincidência com o seu oposto infamiliar” [unheimlich] (3), observação contra a qual alguns linguistas de renome, como Émile Benveniste, se insurgiram. Freud conclui, ao final dessa primeira parte, que heimlich evolui para unheimlich até uma coincidência, um recobrimento das duas noções.
A segunda parte, apoiando-se em um estudo dos contos de E.T. Hoffmann, apresenta a tese freudiana (4). O Unheimliche é o retorno da angústia de castração edipiana recalcada. Essa “nuance particular do assustador” (5) indica o retorno do recalcado. “Restam agora apenas alguns poucos complementos, já que com o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência de pensamentos, a relação com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração já se esgotou razoavelmente a extensão dos fatores a partir dos quais o angustiante se torna infamiliar” (6). A essa redução do infamiliar à teoria edipiana, ele acrescenta, contudo, que ela se produz “frequente e facilmente […] quando as fronteiras entre fantasia e realidade são apagadas” (7).
Na terceira e última parte, Freud busca precisar esse ponto distinguindo diferentes modalidades do que ele chama realidade: “realidade material”, “realidade psíquica”, “realidade comum”, “realidade literária ou ficcional”. Em suma, assistimos à explosão do termo “realidade”. É o preço a pagar pelo dogma freudiano da verdade, isto é, o dito complexo de Édipo, na medida em que ele implica, para o sujeito Freud, um intransponível mais além do pai. De fato, em sua carta a Romain Rolland, em 1936, Freud, (8), aos 80 anos, volta pela primeira vez à experiência que ele havia tido, anteriormente, na Acrópole. Analisa que, nesse momento em que realiza um passo mais além do pai, é invadido por um sentimento estranho, que ele qualifica não de Unheimliche, mas de “Entfremdungsgefühl”, uma espécie de despersonalização que lhe acomete, então, e que ele formula assim: “o que eu vejo não é real” (9). Entfremd vem no lugar de Unheimliche quando se trata de ir mais além do pai.
Com Lacan, nesse mais além
Compreendemos que nessa experiência da cidade vazia, trata-se do real. O que diz Lacan?
Em O Seminário, livro 10: a angústia (10), encontramos, evidentemente, algumas referências essenciais ao infamiliar. Jacques-Alain Miller, que estabeleceu o texto, intitulou o capítulo III: “Do cosmo à Unheimlichkeit”, e o capítulo IV: “Além da angústia de castração”. Jacques-Alain Miller traça a via a seguir nesse último título. Trata-se de um mais além. A angústia é o afeto que não engana, discernindo o surgimento, no mundo da realidade, esparsos, mas escondidos entre os objetos do cotidiano, os objetos a que a provocam (11). Eles escondem tanto a imagem do corpo como os significantes, tanto i(a) como A. Uma das molas de Unheimliche é, portanto, a função -ϕ. A cena do mundo, desertada dos corpos falantes que o animam, é vazia de objetos como também do barulho e do furor da fala, das palavras e dos sons. Silêncio da pulsão. Contudo, permanecemos num campo em que o imaginário, o simbólico e o real continuam enlaçados. Isso permanece habitado. Lacan apresenta uma redução surpreendente em sua fórmula: “Como se sabe, o homem habita e, mesmo não sabendo onde, nem por isso deixa de ter o hábito” (12).
Mas às vezes esse enlaçamento vacila. Encontramo-nos então confrontados com o que Roland Barthes chama “um efeito de real”, uma Uberdeutlichkeit, uma claridade bastante intensa segundo o termo utilizado por Freud a propósito do sonho de Signorelli. Mas corrijamos imediatamente esse ponto. Não se trata de um sonho. Trata-se do sono quando, precisamente, ele não é incomodado pelo sonho. Isso dorme de verdade, até mesmo em Nova York. É, portanto, o inconsciente que está confinado. Quando ele não é mais correlato a -ϕ, ao signo do desejo do Outro, o vazio faz “sinal do real” (13), expressão que colhi em um texto de J.-A. Miller sobre a angústia. Para retomar o apólogo de Lacan sobre o encontro com o louva-a-deus, não há mais louva-a-deus.
O efeito de surgimento do real, ali onde estava a realidade, indica a imediatez de um franqueamento que se apreende precisamente nesse afeto que é o Unheimliche. O sujeito é desalojado tanto de seu modo de gozar pulsional como do Outro que desapareceu. Unheimliche dá lugar a Entfremd.
Falas analisantes
Tudo isso é bem teórico, me dirão vocês. E vocês têm razão. Lugar seja dado à fala analisante.
Confinado com sua família, ele fala de um afeto estranho e repentino que o invadiu durante “uma compra em um supermercado. Nosso carrinho, inicialmente vazio, se enchia de mantimentos. Fui então tomado por uma impressão estranha. Mais o meu carrinho se enchia, mais eu me sentia vazio. Quando essa impressão abrandou, depois que a formulei em sua bizarrice, pude nomear para mim mesmo esse momento de vazio ligando-o a uma tensão entre a necessidade e até mesmo o dever de alimentar a família, meus próximos amados, e esse amontoado de produtos de consumo, que me pareceu, então, indecente. Uma tensão entre a barriga [bide] e o vazio [vide] se encarnara em meu corpo”. A oralidade é, para esse sujeito, um dos modos preponderantes de gozar, que traz a marca da fala materna em sua infância – ele tinha que comer até o fim os pratos servidos à mesa familiar. Não tinha acesso ao vazio, mas sobre ele repousava a responsabilidade de esvaziar o objeto oral.
Afirmemos, portanto, que esse confinamento produz nos corpos falantes que somos um esvaziamento do gozo pulsional que traça a via de nosso habitat, como diz Lacan, onde habitamos, mesmo que não saibamos onde, e nem por isso deixamos de ter o hábito. Segue-se daí, na imediatez de um instante, um encontro com o real, um encontro para além do signo que constitui, para cada um, a angústia. Mais além da angústia o real surge. É o vazio ali onde estava a pulsão.
Tradução: Yolanda Vilela
*Publicado originalmente em “Lacan Quotidien” N.878 e gentilmente cedido pela autora para a Correio Express.
Notas
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Brousse, M.-H. “Os tempos do vírus”. In: Correio Express n. 07. Publicado originalmente em Lacan Quotidien, n. 876 (25/03/2020).
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Freud, S. “O infamiliar” [Das Unheimliche] seguido de “O Homem da areia”. Trad. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares e Romero Freitas. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2019, p. 75, 77 e nota p. 103.
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Ibid., p. 45.
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Ibid. p. 49 e seguintes
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Ibid., p. 35.
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Ibid., p. 89 e 91.
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Ibid., p. 93.
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Freud, S. “Um distúrbio de memória na Acrópole” (1936). In: Obras Completas Volume 18. O mal-estar na civilização, Novas conferências Introdutórias à Psicanálise e outros textos [1930-1936]. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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Ibid. p. 444.
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Lacan, J. O Seminário, livro 10 : a angústia. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
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Sobre esse ponto, leremos uma passagem fundamental de O Seminário, livro 10: a angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 103-104.
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Lacan, J. “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 536.
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Miller, J.-A. “Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jacques Lacan”. Parte IV: “Aquém do desejo”. In: Opção lacaniana n. 43. São Paulo: Eólia, 2005, p. 46.