Por Luis Francisco E. Camargo
Lacan adicionou à série das três profissões impossíveis de Freud, educar, curar e governar[1], a posição do cientista: “há uma coisa que Freud não falou, porque era tabu para ele, a saber, a posição do cientista. É igualmente uma posição impossível”[2].
Diante da consciência de uma impossibilidade, o cientista se angustia, coisa inútil para Lacan: “é divertido ver nestes últimos tempos alguns cientistas que trabalham em laboratórios seríssimos alarmarem-se de repente, ficarem com medo, significa ter um cagaço, e se dizerem: suponham, depois de termos feitos delas um instrumento sublime de destruição de vida, que um fulano liberte do laboratório todas essas pequenas bactérias com as quais fazemos coisas maravilhosas”[3].
Lacan fez disso uma paródia ao imaginar que o surgimento de uma bactéria indestrutível, e por que não um vírus mortífero e resistível a tudo, “limpasse a superfície do globo de todas essas coisas […], em particular humanas, que o habitam”[4]. Poderia ser um alívio sublime que, de repente, estivéssemos lidando com um verdadeiro flagelo saído das mãos de biólogos. Seria um triunfo: “significaria que a humanidade teria de fato chegado a alguma coisa – sua própria destruição […] a destruição de todo o mundo vivo”[5]. Nesta época se discutia o embargo de algumas pesquisas científicas com superbactérias. Era uma fantasia que provocava, em certa medida, a angústia nos cientistas, mas que não deixa de ser atual, pois encontramos hoje algumas confabulações paranoicas que circulam nas redes sociais a respeito do COVID-19, por exemplo, que é uma arma biológica, um vírus chinês criado pelo partido comunista com o objetivo de destruir o ocidente. São fantasias diante de um real; são tentativas de transformar a verdade em saber. É de nosso conhecimento que algumas dessas transformações podem resultar em saberes delirantes. Mas, enfim, por que podemos denominar o COVID-19 de um real?
Na entrevista (supracitada) de 1974, realizada em Roma, Lacan relembra que a psicanálise detém essa função de impossível porque se ocupa especialmente do que não funciona, em outras palavras, do real. A pandemia provoca uma desordem e, por isso, podemos chama-la de um real para a sociedade. Ela desorganiza tudo, fura as estruturas e as organizações, mediante o reconhecimento da ciência de que se trata de um elemento desconhecido, destrutivo, incontrolável, ineliminável e imprevisível: “é a diferença entre o que funciona e o que não funciona. O que funciona é o mundo. O real é o que não funciona”[6]. Em suma, o discurso da ciência nomeia esse real. Primeiramente temos o acontecimento, o adoecimento e as mortes súbitas dos primeiros infectados e, posteriormente, a localização do patógeno, sua descrição, classificação e nomeação; é o início de um processo de transformação do real em saber. Sabe-se que é um vírus, que é potencialmente agressivo ao organismo humano, que é de rápida disseminação e de fácil contaminação. As ciências são o que podem atribuir ao COVID-19 um estatuto de real, na medida em que é o discurso suposto poder sobre esse real. O seu poder não deixa de se colocar, como na psicanálise, por meio de um saber suposto, um saber suposto nos infectologistas e nos epidemiologistas.
Mas as ciências não deixarão de encontrar os seus opositores, geralmente advindo dos discursos totalitários e religiosos. A existência do COVID-19 desloca o poder dos aspirantes a soberanos, dos padres e pastores, para as mãos dos especialistas. São os infectologistas que decidem quem trabalha, quem circula e quem fica em casa. Em última instância, é a ciência que passa, em certa medida, a governar, pois é um real para a biologia, para os representantes da “nova síntese” evolucionista, como destacou Laurent[7], que combina a genética mendeliana com a seleção natural darwiniana por meio da modelização matemática sobre a genética de populações de organismos vivos. Trata-se daquilo que Foucault denominou de biopoder, “essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais [e pode] entrar na política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder”[8].
Se o vírus é uma manifestação de um real, é importante destacar que esse real se difere, na minha opinião, do real da psicanálise, onde o real é o real do falasser. A desordem nos sujeitos também é provocada pelas biopolíticas populacionais decorrentes da pandemia, as quais afetam as vidas de forma particular, tendo em vista que as representações das percepções deste real são singulares. É a partir de uma apreensão simbólica inicial do real da espécie que o sujeito pode apreender o seu real, o real de um exemplar. Em outras palavras, os atributos da espécie sofrem modificações singulares em cada exemplar devido a existência da linguagem. É por isso que o vírus e a pandemia não são um real para a psicanálise; o real para a psicanálise é aquele que, de certa forma, já passou por um juízo de existência para os sujeitos, a partir das suas representações, isto é, a partir do seu inconsciente.
* * *
Freud em seu texto A negação (Die Verneinung)[9], objeto de um comentário minucioso realizado por Jean Hyppolite e Jacques Lacan[10], destacava que ela consiste numa dupla função de juízo (denegação), sublinhadas por Jean Hyppolite como: (1) juízo de atribuição, que consiste em introjetar (aceitar) ou expulsar (recusar) um atributo (característica) de um objeto e; (2) um juízo de existência, que consiste em admitir ou contestar a existência de uma realidade a uma representação[11].
Acredito que esse texto possa nos ajudar a entender algumas estratégias negativistas da realidade, por exemplo, negações do tipo que o vírus pode ser (1) mortífero, desconhecido, indestrutível e; (2) que a sua representação atesta a existência de uma realidade. Isto é, primeiro a negação dos seus atributos afirmando que se trata de uma gripe comum; segundo a negação da sua existência, contestando a sua realidade: “essa pandemia não existe”.
Na primeira negação, decorrente de um juízo de atribuição, o sujeito deve decidir se seus atributos são de natureza boa ou nociva, inútil ou útil. Freud descreve esse juízo pelo mecanismo da introjeção. A negação é a rejeição/exclusão do que é mau e a afirmação é uma introjeção (simbólica) do que é bom. Trata-se do Eu articulado ao princípio de prazer. Na segunda negação, decorrente de um juízo de existência sobre o real da coisa representada/imaginada, encontramos o Eu relacionado ao princípio de realidade.
Freud afirma que uma representação é a garantia que o representado se inscreveu em uma realidade psíquica. Ao se inscrever podemos atestar em diferentes sujeitos diferentes realidades, como a teoria de que o vírus é uma arma biológica criada pelos chineses. Trata-se de uma representação que se inscreve numa realidade psíquica por meio de um juízo de atribuição. De certa forma, toda percepção da realidade externa nunca será fiel. As percepções são modificadas e alteradas por fusões e omissões, por deformações. As transformações do real em representações dependerão da relação do Eu com o princípio de prazer e com o princípio de realidade. Do mesmo modo que isso se aplica as formações do inconsciente, parece não ser um exagero aplicar a tudo o que, para mais ou para menos, provoca uma desordem nos sujeitos.
Finalizo com a questão sobre o nível do apego narcisista de cada um. A negação ou a afirmação depende disso. Não foi à toa que Freud assinalou que o narcisismo geral, o amor próprio da humanidade, sofreu três golpes por parte da pesquisa científica: (1) a revolução copernicana, que pôs fim ao geocentrismo; (2) o evolucionismo, que abalou as teorias criacionistas e a posição de exceção e privilégio da espécie humana e; (3) a psicanálise, que demonstrou que o Eu não é soberano na sua própria casa[12]. Será que as pesquisas sobre a pandemia do COVID-19 também provocarão um golpe no narcisismo da humanidade?