Por Niraldo de Oliveira Santos
De uma cidade a história, depressa muda mais que um coração infiel[1]. Fomos todos tomados pelas consequências devastadoras do covid-19 e, mesmo para aqueles não acometidos pelo vírus, seus “efeitos colaterais” foram se alastrando insidiosamente em nossas vidas. Como uma nuvem negra vinda do oriente, as cidades tornaram-se desertas ou semidesertas e, para aqueles que podem contar com o refúgio do lar, este passou a ser o ponto de ancoragem.
Diante deste cenário, marcados por esta contingência, ofertamos os atendimentos pela internet, e as sessões passaram a ser à distância, ainda que estivéssemos na mesma cidade – faraway so close. Podemos nos autorizar e utilizar das liberdades do ato analítico e do uso das tecnologias, “se isto for feito sob transferência e a partir do desejo do analista”[2]. Decerto, não se trata de uma substituição automática da prática clínica feita antes. O analisante não vai mais ao nosso encontro; de modo mais evidente, não temos aí a presença dos corpos, nem o pagamento em espécie. Porém, a mesma internet, que em uma vertente pode ser o portal hipnótico para o consumo, é também o que permite ligar a voz do paciente que fala ao analista que o escuta e faz manter a prática analítica viva.
Fechamos nossos consultórios e levamos conosco livros de Freud, Lacan e vários outros – afinal, a aposta é a de que o trabalho continue… a nos salvar. Retirantes, montamos nossos consultórios ali, onde o sinal da internet alcança, deixando estes livros, e nós mesmos, em companhia agora de Graciliano, Clarice, Rosa, Pessoa e Cortázar.
Nossos pacientes passaram a ser atendidos, em grande parte, direto de seus quartos: “O quarto é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo”[3]. Para aqueles que não estão sozinhos em casa, e porque a sessão analítica é momento de falar daqueles com quem os laços se dão, pequenos rituais passaram a fazer parte, para que se assegurassem de que seriam ouvidos apenas pelo analista. Uma música de fundo, a tv ligada na sala. Participações especiais dos felinos, arranhando as portas fechadas. Apesar dos ruídos, dos problemas de “conexões”, tendo do outro lado o analista com sede de ouvir, as sessões acontecem. Seguem os discursos, os sonhos são relatados, os significantes deslizam em cadeia… e se repetem: “estranho”, “esquisito”, “até quando ficaremos assim?”, “vamos sobreviver”, “vou morrer?”, “você vai morrer?”, “cuide-se!”. A insistência do real, de semblante invisível, porém circundante, evoca em cada um a singularidade de uma espera, e para muitos ela tem a face do pior, tornando esta escuta atual ainda mais exigente… e cansativa. Sob o véu da tristeza e da angústia, a necessidade de uma dilatação temporal para uma posterior compreensão. Somos remetidos ao texto de Freud: “ao novo e ao não familiar se deve, de início, acrescentar algo para torna-lo infamiliar”[4]. Do que se trata? Freud nos fala da “imutabilidade de nossa posição diante da morte, (…) que é exigida para que o primitivo possa retornar como algo infamiliar”[5].
Quais a consequências deste momento insólito em que vivemos? Quando retomarmos as sessões presenciais, o que será recolhido disso tudo? Trata-se de um ponto de inflexão que nos deixa isolados na estranheza do infamiliar, com inúmeras interrogações. Por isso, acrescentamos mais uma, desta vez, de Lacan: “Essa ruptura que dissolve o que constituía forma, fenômeno, meteoro (…), não será também por dar adeus ao que dessa ruptura daria em gozo que o mundo, ou igualmente o imundo, tem ali pulsão para figurar a vida?”[6].
Melhor não nos apressarmos em respondê-las.