Por Jésus Santiago
A civilização é mortal
É preciso dar-se conta da concepção lúcida e realista a partir da qual Éric Laurent aplica a tese lacaniana da inexistência do Outro a este momento grave que a civilização experimenta em virtude da pandemia do novo coronavírus.[1] O uso desse aforisma percuciente torna possível interpretar o quanto a ação corrosiva da pulsão de morte na época da ciência se apresenta sob o modo de impasses quase insolúveis. Antes mesmo de Freud ter fornecido as grandes coordenadas do problema da necessidade “da renúncia da satisfação das fortes pulsões sexuais e destrutivas” para a sobrevivência do laço social, em seu Mal-estar na cultura,[2] Paul Valéry já havia prenunciado que a civilização tem a mesma fragilidade de uma vida: “Nós, civilizações, agora sabemos que somos mortais”,[3] proclamava ele, no dia seguinte à Primeira Grande Guerra. Como se sabe, os impérios europeus se lançaram em uma disputa bélica uns contra os outros, a ponto de quase se destruírem. Essa história apenas confirma a constatação esclarecedora de que o Ocidente iria conhecer o mesmo destino trágico das grandes civilizações que lhe haviam precedido, ou seja, as civilizações romana, babilônica, egípcia, grega, persa, maia, asteca e muitas outras que acreditavam ser invencíveis e imortais.
Segundo Valéry, se as “sociedades se elevam da brutalidade em direção à ordem”, elas, no entanto, “repousam sobre Coisas Vagas”.[4] Acrescenta, ainda, que, “como a barbárie é a era do fato, é necessário, portanto, que a era da ordem seja o império das ficções”[5], pois não há potência capaz de fundar a ordem pela simples pressão dos corpos pelos corpos. Fazem-se necessárias ao processo civilizatório, diz Valéry, as forças fictícias.[6] Jacques-Alain Miller retoma essas passagens para extrair o princípio de que “ou tudo não passa de um teatro de sombras, ópera-bufa, cenografia de semblantes, ou há o real. Talvez, o real goste do semblante, assim como o Absoluto quer estar junto a nós (Hegel)”.[7] Com efeito, esse momento de crise e impasse da civilização é mais uma prova de que o real ama o semblante. De fato, quando os semblantes de uma época começam a ruir, tudo pode desaguar nesses impasses insolúveis quanto ao real, que se apresentam, nos dias de hoje, para além do que anunciava o termo freudiano de mal-estar. Não é incomum ver, nas histórias políticas das nações, o recrudescimento da cólera, do ódio, das queixas arrasadoras, patéticas, daqueles que veem os semblantes baterem em retirada, fato que, no fundo, demonstra que se goza com eles.[8]
A esse propósito, é fundamental a distinção que estabelece Laurent entre o uso dos semblantes da ciência, particularmente da biopolítica dirigida à gestão das populações que fazem os governos populistas, autocráticos e ditaduras, e aquele das democracias liberais europeias. Ao contrário destas últimas, o emprego da expressão francesa “bras d’honneur” – dar uma banana para o público, gesto considerado obsceno e ofensivo – é preciso para caracterizar a atitude de desdém do governo Bolsonaro para com os semblantes ofertados pela ciência. Trata-se de uma postura negacionista e de menosprezo pela ciência, postura semelhante à que manifestou, anteriormente, com relação à mudança climática. Com uma única diferença: a temporalidade dos efeitos devastadores e catastróficos da pandemia não é equivalente àquela da mudança climática. No fundo, esse desdém pela ciência é um menosprezo pelo pior, ou pelo caráter mortal da civilização, na medida em que se desconhece que a fatia da população vulnerável no Brasil é muito maior que nos países nos quais prevalecem as democracias liberais, com a tendência ao agravamento dos efeitos econômicos adversos e calamitosos dessa crise.
O cálculo do semblante
Não é possível evocar a atualidade cheia de riscos e mortífera, provocada pela pandemia do coronavírus, sem considerar a crise e os impasses atuais da vida civilizada, ocasionados pela presença impactante e maciça da ciência. É o discurso da ciência que, desde a idade clássica, fixa o sentido do real para nossa civilização. No entanto – eis, então, o paradoxo com o qual nos defrontamos –, é por meio da própria ciência, com sua racionalidade aplicada à administração dos seres e das coisas, e, portanto, de suas práticas e instrumentos técnicos dos mais sofisticados, que se busca implementar soluções para a crise atual. Como tratar esse momento de crise aguda da vida civilizada que o vírus nos impõe? Para isso, não se trata apenas de conceber o nascimento e a sua natureza causal interna.
Se esses impasses não se restringem ao acontecimento da virulência mortífera do vírus, é porque se associa a ele um conjunto de outros acontecimentos que configuram um mundo – nosso mundo presente –, e, por sua vez, há algo, nesse mundo, que se mostra extemporâneo ao funcionamento do que é o real. Como declara Lacan, a diferença entre o mundo e o real é a “diferença entre o que funciona e o que não funciona”.[9] Se o que funciona, caminha e gira em círculos é o mundo, o real constitui-se, em seu eterno retorno, como um obstáculo a esse funcionamento. Ambas, ciência e psicanálise, acedem ao real pelo impossível próprio ao que não funciona no mundo. Porém, diz Lacan, o real da ciência é o do número enraizado na linguagem. Na psicanálise, acede-se ao real por um impossível muito singular, na medida em que este se incrusta na contingência, e não na necessidade própria do saber que se aloja no real.[10]
Por outro lado, isso não é tudo, pois esse acesso ao impossível na psicanálise exige o concurso do semblante, ou seja, esse misto de simbólico e imaginário que se opõe ao real. Em consequência, como propõe Laurent, os discursos são aparelhamentos de semblantes tentando cercar esse impossível, aquele de um gozo que se escreve por intermédio de cada um de nós. Sugere, assim, que, diferente do cientista, o psicanalista não se engana pela miragem da referência, especialmente quando se trata de calibrá-la e calculá-la na perspectiva das exigências do trabalho da civilização. “Ao contrário, ele ataca a necessidade da referência e esclarece a contingência da causa de desejo e das formas da substância gozante”[11]. É, exatamente, por essa falta da referência que o uso da inexistência do Outro para tratar a crise dos fenômenos civilizatórios não se faz sem fazer intervir o cálculo concernente aos semblantes.
A meu ver, o esclarecimento mais decisivo quanto à aplicação do princípio da inexistência do Outro à crise atual do coronavírus é o fato de que o semblante, em sua acepção mais ampla, “inclui cálculo”.[12] Esse cálculo seria profundamente ineficaz e inoperante se omitíssemos a intromissão do real em jogo nessa crise. Em função disso, Laurent retoma a discussão que data da época do Curso de Orientação Lacaniana, “O Outro que não existe e seus comitês de ética”, em que se apreende a ruína do Outro em relação de continuidade com o real – ou seja, ela lhe é correlativa.[13] Isso quer dizer que, quando o sujeito é confrontado com o Outro em ruína, quando o discurso da ciência se mostra incapaz de acalmar as angústias do sujeito contemporâneo, é o real que irrompe sob o modo do que a experiência do inconsciente testemunha como o impossível de suportar.
Se o cálculo do semblante se faz sempre com relação à “motérialité” da pulsão de morte para o laço social, não se pode, por consequência, tomar a inexistência do Outro segundo um certo relativismo histórico, sabendo que ela encontra o seu lugar no discurso do mestre e incorpora a ação inexorável dos acontecimentos históricos. Giovanni Bocaccio, no Decamerão, ao abordar a “pestilência mortífera” negra que se deflagrou no ano de 1348, em Florença, relata que “entre tanta aflição e tanta miséria […], a referenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se”.[14] Assim, se a inexistência do Outro assume um valor transhistórico, se ela se faz presente ao longo das épocas, a tendência do saber analítico é tomar o acontecimento irruptivo da peste como superficial aos olhos desse invariável da estrutura. Interessar-se pela novidade do acontecimento parece sempre, a despeito de todas justificativas, como mais aquém do que se trata na interpretação propriamente psicanalítica sobre a ruína do Outro.
Ledo engano, pois o próprio Lacan nos mostra que esse invariável próprio à vida civilizada não é antinômico com o movimento histórico que lhe estrutura e, finalmente, lhe dá corpo. Demonstra, então, que o princípio do Outro que não existe é compatível com efeitos de discursos que, em última análise, lhe condicionam, efeitos que, no caso do novo coronavírus, dizem respeito ao lugar preponderante das práticas biopolíticas sobre os corpos. É sabido que, desde o século XVIII, surgem novas formas de governamentalidade liberal que visam racionalizar, por meio da ciência, os problemas postos pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças e etc. Diante da pandemia mortífera do coronavírus, postula-se que a biopolítica impõe-se não apenas como opção tecnológica dos Estados liberais e mesmo iliberais, não apenas como razão governamental dominante com a preocupação de eficácia máxima nas questões da vida e da população, tornando-se, portanto, uma condição inevitável para lidar com o caráter mortal da civilização.
O vírus, a biopolítica e seu avesso
O outro ponto culminante da análise sobre a ação mortífera do vírus e as respostas que governos e sociedade civil procuram dar é quando Laurent desloca a inserção do comitê da esfera da ética para a da ciência. Na verdade, o comitê é concebido como uma espécie de suplemento da inexistência do Outro, capaz de suportar a falta de referência e de apoio que se introduz na civilização da ciência por meio da profusão de semblantes, gerando o sentimento de que, se tudo é semblante, logo, não há o real. Evidentemente que se vivemos na época dos comitês é porque as grandes questões da contemporaneidade são palco de controvérsia, conflito e ceticismo sobre as palavras e as coisas, enfim, sobre o real. Diante da disseminação letal do vírus, é notório que a questão ética aparece como subordinada às decisões cujos protagonistas são os cientistas. Ao longo do texto, isso se verifica de várias maneiras. Apesar de introduzir uma variável de importância capital para o cálculo geral, o modo como cada um interpreta as instruções restritivas relativas ao confinamento e ao isolamento está submetido ao ato decisório dos comitês científicos. Outro exemplo que se destaca a propósito dessa supremacia do científico é a questão de se deixar infectar muitos ou de conter muitos, ou seja, trata-se de um problema mais aquém da dimensão ética, tendo em vista que prevalece uma decisão de cunho pragmático concernente à vulnerabilidade da vida. O terceiro exemplo envolve o que se designa como o conceito de “leito”, pois esses dispositivos de reanimação possibilitam, como refere Laurent, a base fundamental para o cálculo, visando o objetivo da immunity herb da população.
Ao mesmo tempo, quando o desvario e o desespero sobrepujam em meio ao aprofundamento da ação mortífera do vírus, quando os semblantes de uma época estão prestes a cair por terra, um certo real das formações políticas se desnuda. Vivemos um momento em que é preciso saber respeitar os semblantes da ciência. Aliás, já se constata, nesse momento histórico, o surgimento de dissenções por parte dos governos populistas e conservadores – Trump e Bolsonaro –, que incitam uma desobediência civil a esses semblantes. Quando se começa a zombar dos semblantes que conferem algum litoral a esses excessos do gozo mortífero, é a própria ordem social que se revela confundida com o puro semblante. Portanto, não são tempos que se prestam a abalar o fundamento de semblante do laço social e, tampouco, pôr em cheque os significantes mestres da tradição, pois a sua desestabilização favorece o retorno da face feroz e tirânica da ordem social e política.
Nestes tempos atuais, o avesso da biopolítica é admitir que o recurso inevitável às orientações dos comitês médico-epidemiológicos para lidar com contágio do vírus se faz tomando a biopolítica como um sintoma. É um sintoma na medida em que o referente, no âmbito da civilização da ciência, torna-se ainda mais fugidio e real e, por isso, impossível de ser designado.[15] Diante disto, diz Laurent, resta-nos construí-lo. E não se constrói sem levar em conta que há um vazio no cerne do império dos semblantes, “um vazio de um significante-mestre, de um princípio único ordenando o discurso, e que o lugar deste Um” se mantém precariamente pelas práticas atuais da ciência.[16] Como se afirmou antes, se o semblante impera, então, para o sujeito contemporâneo, é como se o real não existisse.
O avesso da biopolítica, que a psicanálise encarna como discurso, supõe considerar o cálculo de que, nos tempos de crise, a imersão do sujeito nos semblantes torna-o presa fácil de um desprezo pela força devoradora do real que emerge sob o fundo da angústia. Ainda que seja uma miragem, o referente existe para a biopolítica, por isso, em seu cálculo, ela conta com o que funciona, a saber, com os signos do mundo. O cálculo, para o avesso da biopolítica, conta com o que não funciona e, portanto, se exerce com apoio nos semblantes, pela razão de que são compatíveis com o vazio escavado, em cada falasser, por meio de uma escritura para o gozo. Lacan corrige Roland Barthes[17]: o império de signos é, de fato, um império de semblantes.