Por Andrea Vilanova
Em isolamento social, seguindo as recomendações das autoridades sanitárias, assisto às notícias de fechamento de fronteiras em nosso país e no mundo. Entre recomendação e exigência legal, de um país a outro, a circulação de pessoas passa por flutuações, seguindo variações. E nós seguimos nos recolhendo em nossas casas, com água corrente, sabonete e o espanto diante das últimas declarações do governo cedendo em relação às restrições, na direção contrária das recomendações[1].
Laurent em “L’autre qui n’existe pas et ses comités scientifiques”[2], nos apresenta uma leitura fina das camadas que compõem a leitura possível dos direcionamentos tomados por cada governo.
A compressão e o afrouxamento das medidas encontram apoio em modelos biológicos preditivos. Entre a necessidade e a incerteza, a urgência de acionar a imunidade coletiva faz soar uma pragmática sem princípios, como destaca. Exemplo disso é o “acordeon de Neil Ferguson” que, com suas projeções, mira a imunidade coletiva, distinguindo-se num cenário de diversos discursos. Assim, parte-se do jogo entre reclusão e circulação, a fim de obter “a herd immunity da população frente a um vírus sobre o qual há muito para aprender”, adverte Laurent.
Em outro passo, ao interrogar as justificativas das medidas drásticas de controle da população nesse cenário de contágio generalizado, Laurent destaca que a maioria dos governos apoia-se na ciência e seus correlatos. Já, os “autocratas puros ou sonhados” ao confiarem apenas em si mesmos, destilam a desfaçatez em cadeia nacional: “Depois da facada, não será uma gripezinha que vai me derrubar”[3].
Tomando as especificidades de nossa realidade de país autocraticamente instalado no sonho do capitão reformado, a expressão herd immunity se decantaria de modo contundente: por um lado expectativa de imunização, por outro, rebanho para abate. É o que se pode constatar, por exemplo, na ausência de medidas que incluam ações para lidar efetivamente com as muito mais de 100 mil pessoas, dados de 2015, vivendo em situação de rua em nosso país[4]. Em sua distância da realidade atual da situação, esta cifra reitera o cinismo. Vale lembrar que está em elaboração a supressão destas informações no próximo senso do IBGE[5]. A pragmática neoliberal revestida de cientificismo pactua, por estas bandas, com a necropolítica[6], num jogo muito arriscado que tem paradoxalmente o próprio vírus como adversário, pelas reações coletivas e institucionais que brotam.
A pandemia exige o forçamento do tempo para compreender de dentro do instante de ver, sem que se trate de precipitar o momento de concluir. Entender que nossa civilização tem a tarefa de responder ao desafio que significa defrontar-se com a constatação de que o Outro não é mais que um semblante – é, também, responder entre uns e outros, pelos efeitos desse “outro real para o sujeito que vive na linguagem”.
Este real que não cabe nas cifras, nem nas evidências, nos arrebata, a todos e a cada um: angústia, esperança, amor, ódio, loucura e debilidade mental, soletra Laurent. De certo, não será higienizados que responderemos, nós psicanalistas, à desmontagem dos semblantes, também, no que diz respeito à tradicional cena da sessão.
Nos últimos dias, com hora marcada, nas janelas, varandas e feeds, soa o coro da indignação e também da gratidão. Experimentamos o sentimento comunitário, a solidariedade surge como surpresa, em gestos de delicadeza e generosidade a nos advertir que não somos rebanho. E nisso a dignidade de sujeito conta.