Por Lucíola Freitas de Macêdo
Angústia ante a incerteza e em face aos efeitos da reclusão, do confinamento e do isolamento, que incidem abruptamente sobre o cotidiano da vida e do trabalho, restringindo o contato e a vida em comum. Esta tem sido a resposta mais imediata recolhida na clínica diante das medidas que vêm orientando globalmente a gestão da pandemia pelas autoridades sanitárias nos quatro cantos do mundo, aplicadas com maior ou menor rigor, de modo mais ou menos severo, com a finalidade de intervir na curva de contágio do COVID-19, evitando assim um colapso nos sistemas de saúde.
Há algo especialmente inquietante naquilo que escuto não apenas dos analisantes, cujos atendimentos migraram nas últimas semanas para consultas on-line, como também através do bombardeio informativo veiculado pelos meios de comunicação: parece haver uma tendência a se perder de vista a finalidade das medidas de prevenção e de contenção, como também, um desconhecimento dos princípios epidemiológicos que orientam tais medidas. Este epifenômeno da chamada crise do coronavírus, que bem poderá ser transitório, mas que talvez seja de estrutura, me deteve um pouco mais em minhas elucubrações, ao ponto de formular-se como questão: e se a adesão à norma passar a vigorar acéfala, desmedida, em sua forma eminentemente imperativa, à qual se obedece cegamente, ou como um ato de fé?
Nota-se, tanto por parte da expertise científica, quanto dos governantes, o recurso massivo à metáfora da guerra – o que humaniza o vírus com a roupagem de um inimigo a combater. Será o vírus um semblante do inimigo à altura da paisagem apocalíptica que nos envolve em tempos do “Outro que não existe”?[1] O inimigo comum de cujo combate advirá a coesão e a solidariedade entre os povos? Ou será que ao invés da tão sonhada cooperação universal, assistiremos o raiar de novas formas de segregação? E se neste combate ao inimigo comum, ao invés da união, seja a xenofobia, o ostracismo e a desconfiança, a dar o tom dos laços? Ou será ainda, que estas duas direções, humanas, demasiadamente humanas, e aparentemente opostas, coexistirão, moebianamente?
A metáfora da guerra não convence. O que exige um esforço a mais. Não se guerreia contra um vírus. Um vírus não é derrotado. Ele apenas desaparece quando não esbarra num corpo vivo no qual possa se alojar e proliferar. Ou transmuta… A imagem bélica que talvez mais se aproxime do combate a esse agente indesejável que se aloja no corpo humano – fazendo-o inflamar, padecer e às vezes perecer – é aquela do Cavalo de Tróia. Não por acaso Cavalo de Tróia nomeia um pernicioso vírus do mundo digital.
Em meio ao sentimento de ameaça e risco iminente que já pairava sem objeto neste mundo instável e sem fronteiras das redes e dos mercados globais, e que parece ter encontrado no SARS-CoV-2 um objeto catalizador, eis que emerge um paradoxo: a condição que nos aproxima uns aos outros por compartilhamos igualmente o risco do contágio e as restrições das medidas de prevenção e contenção, nos levando a inventar modos inusitados e antes jamais experimentados de fazer laço, poderá ser também a mesma que poderá engendrar, através de uma sujeição cega pautada na homogeneidade (e não na igualdade), novas formas de segregação. Ou, dizendo de outro modo, na via pré-política da homogeneização, o que une é também o que segrega.
Explico-me, acompanhando as formulações de Newton Bignotto[2]: a ideia de homogeneidade do corpo social está presente desde os gregos quando se apresentava referida à condição humana como um ser da natureza, e não do lado da ética ou da política, já que a polis se fundava a partir da diferença. Posteriormente, se articulará ao surgimento do Estado Moderno, e em seguida à ideia de nação e aos debates constitucionais do início do século XX. A temática da homogeneidade ressurgirá novamente quando o racismo e o antissemitismo irrompem na cena política mundial, momento em que uma nação passa a identificar seus membros por semelhanças e/ou diferenças biológicas e raciais, ou seja, por traços que estão fora do universo político, mas que determinam políticas de Estado: no lugar da igualdade perante as leis, busca-se coesão na homogeneidade de um traço, apontando-se como “inimigos” a serem combatidos aqueles que não estão incluídos neste conjunto.
Muitas vezes as lutas por igualdade e universalidade velam pretensões de homogeneidade como um modo de identificação pré-político que, enquanto tal, poderá tender ao totalitário, suportando mal a diferença, a contingência, o desvio e a singularidade, corrompendo os laços formais de pertencimento, ao reduzir o humano à sua condição pré-politica, ou seja, a um “feixe-biológico dentro das nossas casas”[3]: “a homogeneidade, que pareceu algo desejável quando se tratou de salvar a Constituição pela via da exceção, mostra sua face terrível, ao se transformar em instrumento de morte da política”[4]. Ou seja, sob a ameaça da pandemia, em uma situação de exceção, será que, sob as malhas da homogeneização, não incorreríamos no risco de converter a universalidade (ninguém está imune); a diferença (uns portadores do vírus, outros não) e a contingência (a doença poderá ou não se manifestar; em se manifestando poderá ou não ser fatal), em fatalidade e certeza, multiplicando e potencializando, através dos mecanismos de vigilância e controle do Estado, formas já existentes de segregação?
Da condição comum e partilhada da responsabilidade que nos cabe, aquela do confinamento e do isolamento social a que estamos todos submetidos como medidas para conter a epidemia, nos chegam do campo das humanidades e da cultura vozes pensantes, inquietas. Noah Harari alerta para os riscos de que (em nome da homogeneidade) o monitoramento desmedido acompanhado da punição dos desvios, por parte do Estado, produza efeitos iatrogênicos: “embora a quarentena de curto prazo seja essencial para interromper as epidemias, o isolamento de longo prazo levará ao colapso econômico sem oferecer nenhuma proteção real contra doenças infecciosas. Pedir que as pessoas escolham entre privacidade e saúde é uma escolha falsa. Uma população motivada e bem informada é mais poderosa e eficaz do que uma população ignorante policiada”[5]. O filósofo Byung-Chul Han[6], por sua vez, considera o fechamento das fronteiras uma vã e desesperada expressão de um ultrapassado modelo de soberania, que acabaria por caminhar inevitavelmente rumo ao estado de exceção, ao invés de promover uma ampla e irrestrita cooperação entre os países. São as próprias noções de soberania, e também de fronteira, que parecem estar em questão.
O que está no horizonte do homem reduzido ao organismo não seria propriamente a política, mas o que Michel Foucault nos anos setenta (e antes dele o cientista político Rudolph Kjellén, em O Estado como forma de vida) chamou de biopolítica. O que nos remete também à “immunity herd”, ou literalmente, à imunidade do rebanho, como precisamente aponta Éric Laurent[7]. Quando as manifestações do sujeito são aplastadas em seu máximo grau, quando a injunção da norma se desconecta de sua finalidade tornando-se uma pura injunção superegoica – o que em alguma medida já podemos recolher nestes tempos de coronavírus – culmina-se inevitavelmente nas sociedades de controle?
Chegando-se a este ponto estamos a um passo do horizonte examinado por Michel Foucault, em seu curso Em defesa da sociedade, a propósito das transformações da teoria clássica da soberania e da inversão operada pelas tecnologias do biopoder na gestão dos corpos: ao lado do “direito de soberania de fazer morrer ou deixar viver”, passa a vigorar o “poder de fazer viver e de deixar morrer”[8]; ao lado do racismo “clássico” ou étnico, passa a vigorar o racismo “evolucionista” ou “biológico”; e em seu bojo a regulamentação e desqualificação progressiva da morte como subproduto da cadeia biopolítica e do exercício do biopoder[9]. Talvez os países asiáticos, que são aqueles que tem obtido melhores resultados no controle da epidemia através de uma “biopolítica digital” generalizada, sejam um contraexemplo à tese foucaultiana e um caso a se investigar: o que para eles significa fronteira? E soberania?
A dramática situação provocada pela pandemia no mundo ocidental não parece distante da controversa tese de Giorgio Agamben em Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua, do campo de concentração como “paradigma biopolítico do ocidente”[10]. Tese amplamente desenvolvida em O que resta de Auschwitz, onde amplia o espectro da lógica que rege o campo de concentração “à ambição suprema do biopoder em produzir em um corpo humano, a separação absoluta entre o ser vivo e o ser que fala”[11]. À diferença que, na atual pandemia, a engrenagem biopolítica é ativada não por algum semblante ou encarnação do Outro, mas por um agente acéfalo e letal para a vida humana.
Este sombrio horizonte nos convida a revisitar o terceiro ponto de fuga desenhado por Lacan em “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”[12], e uma vez mais localizar quais seriam as derivas universalizantes/homogeneizantes da ciência e da técnica neste tempo que nos cabe viver. O terceiro ponto de fuga diz respeito ao real. Para dizer dele, Lacan aponta o advento do campo de concentração como precursor do que irá ocorrer como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência e pela universalização que ela introduz. Ou seja, para o olho do furacão no qual nos encontramos, hoje.
O momento em que vivemos, tal qual o Cavalo de Tróia, poderá albergar em suas entranhas uma perigosa tautologia – a biopolítica é a política. Ao que tudo indica, está por se escrever um novo capítulo da história, o da biopolítica em tempos do “Outro que não existe e seus comitês científicos”[13], capítulo este que terá a pandemia do COVID-19 como corte social, histórico e epistemológico.
Post scriptum[14]
Estas linhas foram escritas no calor de um instante de ver. Ao relê-las já me parecem caducas, enviesadas, insuficientes. Talvez não seja possível, sobre esta situação que estamos vivendo, fazer qualquer recorte que pareça aceitável por mais que um breve instante. Faltam-nos parâmetros para dimensionar o que quer que seja. A pandemia irrompe como descontinuidade radical, produzindo um antes e um depois na lógica que ordena desde a vida de cada um e a vida em comum, até os mercados mundiais. Nada será como antes. As palavras resultam insuficientes. O simbólico claudica e o que lhe escapa perpassa cada linha deste texto, em face ao trou socavado pelo efeito do COVID-19 em cada um, e em nossa civilização.
Adendo
Como se as coisas já não estivessem transtornadas o bastante, assistimos na terça-feira à noite, estupefatos, a aparição do que não seria demais qualificar como o extremo do irracionalismo político[15] e da irresponsabilidade social. Ademais as agruras da pandemia, tudo indica que teremos pela frente um país convulsionado pela irremediável insensatez de seu presidente. A homogeneização à espreita por outras vias, aquelas do obscurantismo. Talvez o espanto nos proteja da perplexidade. Espantemo-nos!