Por Marcelo Veras
Hoje foi o primeiro dia de ajustes. Conversar com os pacientes e ver os que sustentam a continuidade do tratamento por meio virtual. Nunca tivemos na história da humanidade uma peste com os recursos virtuais que dispomos hoje. A virtualidade abriu uma nova topologia para a exclusão, no mais íntimo encontramos portais para o mais externo. Decidi explicar para alguns de meus pacientes que a psicanálise continua a ser um ofício artesanal, daqueles que exigem sempre trabalhar com o corpo presente. O que é um corpo para Lacan? Para ele o corpo não é uma simples carne por onde circulam eletrólitos. Não é de modo algum o corpo da medicina, este que tanto sofre com a pandemia atual.
O corpo para Lacan é uma questão de consistência. Imaginária, uma consistência imaginária. E ele agrega dois objetos extra-carne que demonstram precisamente a externalidade dessa consistência: a voz e o olhar. Estes dois últimos fazem parte do corpo, perfurando-o como objetos do desejo, e não da demanda. A demanda pede objetos mais sólidos, o seio e as fezes. Não posso garantir essas substâncias, nem mesmo um aperto de mão. Mas pela tela de meu WhatsApp consigo conduzir minhas sessões através da voz e do olhar, ainda que um olhar perturbado pela má qualidade do sinal e do tamanho da tela em alguns casos.
Digo então que estou diante deles, virtualmente, mas esse encontro apenas é possível porque estou presente com meu corpo vivo do outro lado da linha. Não é uma voz gravada, não é nenhum registro digital, mas simplesmente um corpo que se apoia no digital para ressoar em um outro corpo. O desafio não é compreender o dito do analisante, e sim saber de que modo podemos interpretá-lo sem que o corte da sessão não se pareça simplesmente com a queda do sinal. Ah, como gostaria de bater um papo com Freud sobre a internet em tempos de Corona! Que conselhos ele me daria? Quem sabe nessa noite eu sonhe a resposta? Digo para vocês amanhã.