Por Marcela Antelo
A função da poesia é arrancar da face do mundo o véu da familiaridade. (P.B. Shelley, 1821) [2]
Quando Freud se atreve a penetrar na comarca da estética, ele o faz com cautela e com a secreta convicção de que tem algo a dizer. Reconhece que a arte leva a dianteira no ensaio sempre repetido de arrancar, da face do mundo, o véu da familiaridade. Jacques Lacan formaliza esta posição depois de tomar contato com a obra literária e cinematográfica de Marguerite Duras.
O ponto de partida é o ensaio Das Unheimliche, traduzido equivocadamente, sempre, como “O sinistro”, “O ominoso”, “O estranho”, “O inquietantemente estranho” e, recentemente no Brasil, “O infamiliar”. Podemos convocar aqui o primeiríssimo Lacan: “A verdade pega o erro pelo cangote, na equivocação”[3]. Sentimento indomesticável pela palavra justa, boi neon que não se deixa nomear, não conceito, palavrinha rebelde.
O texto foi concebido em 1912 e só publicado em 1919, no princípio do fim da Grande Guerra. É um escrito desenterrado, sacrílego, largamente menosprezado, que retorna como um morto que se vivifica sem cessar. Lembremos que o pertinaz retorno dos signos é uma experiência do unheimlich, segundo Freud. E, como seu amado Kafka o ilustrara soberanamente, em Na colônia penal, o retorno se inscreve no corpo.
Em geral, tem-se reduzido a abordagem do efeito do unheimlich a certos conteúdos vividos, literários, fílmicos que participam de um campo semântico associado, lateral, vizinho, próximo, semeado também pela diversidade equívoca de sucessivas traduções; eles são, além do sinistro e do ominoso, o suspeito, o bizarro, o grotesco, o terrífico, o lúgubre, o mórbido, o assustador, o extravagante, o fantástico. Pensa-se o unheimlich por atalhos em lugar de percorrer seus labirintos.
Parece que no próximo encontro não seguiremos essa modalidade conteudista, não interessa tanto O infamiliar como tema, senão como acontecimento da sensibilidade. Certo “infantil inextinguível”[4] que Freud soube reconhecer na própria experiência do corpo rebelde ao simbólico que passamos a chamar de gozo feminino.
Sempre que o conselho da EBP propõe um tema de investigação para os encontros, as sirenes epistêmicas da comunidade se fazem ouvir. Para o próximo XXIII Encontro, o alerta vermelho é para não confundir o gozo feminino com as mulheres. Como podemos ler no argumento, o gozo feminino é neutro. Uma vez afirmada essa premissa, resta explicar ao resto dos mortais como é que ele chama feminino.
As mulheres são a ponta do iceberg do que chamamos o gozo feminino. Quando a maré desce, assoma o bloco do gozo enquanto tal, que agita corpos por igual sem respeitar a lei da segregação urinária que o simbólico imprime nesses corpos, pretendendo nomeá-los todos, segregar, distinguir. O iceberg, apesar de freudiano, não parece emprestar-se como a melhor metáfora, já que Lacan vinculava o gozo ao tonel das Danaides e às labaredas do grelhado.[5] De qualquer modo, sustentemos a figura, uma vez que os que já contemplaram um glacial falam do indizível da experiência frente a algo que parece vivo sem oferecer certezas de sê-lo.
O gozo, isso é o que só se percebe ao ver sua constância nos enunciados de Freud. Mas é também o que se percebe na experiência — refiro-me à psicanalítica. O gozo, aqui, é um absoluto, é o real, e tal como o defini, como aquilo que sempre volta ao mesmo lugar.
Se o sabemos, é por causa da mulher.[6]
Ela, que não existe, honoris causa do nosso encontro unheimlich.
O conceito de Freud agarrou-se a Freud, “stickiness”, como se queixa Anneleen Masschelein [7], autora de uma magistral genealogia do unheimlich. Ela sugere exilar o conceito do campo da psicanálise, tratá-lo como um não-conceito, um Unconcept, não como um signo de respeito epistêmico, mas algo para ser exportado ao campo dos estudos literários e sociais.
Esse assassinato selvagem do autor e o desconhecimento da obra de Jacques Lacan, assim como de outros autores da psicanálise, funcionam como gatilhos que disparam um renovado interesse pelo trabalho epistêmico que desejamos no próximo encontro no Brasil.
Das Unheimliche saiu à luz dos loucos anos 1920 e ganhou o tapete vermelho da moda acadêmica nos anos 1980 e 90. O conceito nasceu ao sair da comarca da psicanálise, como afirma Freud em seu primeiro parágrafo, e não parou de viajar. Nessa época, foi canonizado, diz Masschelein, estabilizou-se, e disseminou-se graças às obras de Tzvetan Todorov sobre o estranho; Jacques Derrida e seus espectros; Hélène Cixous e os fantasmas da ficção.
A maioria das obras ‘canônicas’ sobre o tema desconhece a continuidade do conceito com o neologismo que Jacques Lacan nomeia “extimidade”, uma topologia que designa a exterioridade do mais íntimo, assim como a intimidade do fora.
Trataremos de situar essa experiência limite, de borda, de margem, de fronteira, de contato. [8] A fronteira dos confins, como dizia Patrícia Highsmith, que a percorreu com sua prosa. O mundo é estranhamente familiar de um modo inquietante.
Como uma ameba movediça, o fenômeno se furta, intangível, quando as armas da teoria pretendem fixá-lo em definições. Assim como a palavra bizarro [9] é bizarra, o Unheimlich, o inquietantemente estranho, é um conceito fantasmático que desata um efeito igualmente fantasmático. Sua fugacidade, quase uma palpitação, o revela como verdadeira substância do inconsciente em ato, sempre infamiliar.
Freud não aceita o ponto de vista de Jentsch sobre a incerteza, mas o segue porque foi ele quem introduziu E.T.A. Hoffmann, escritor de literatura fantástica, aquele que, “melhor que ninguém”, produziu efeitos de unheimlich com sua letra. O artifício psicológico de Hoffmann consiste em deixar o leitor na penumbra sobre se uma figura particular na história é um ser humano ou um autômato. Freud sublinha o tom de Jentsch, feito de modo que o leitor não fixe sua atenção primariamente nessa incerteza. O acesso direto e claro só dissiparia a peculiar estranheza, em lugar de postergá-la para potencializar seu efeito.
Jorge Luis Borges encontrou-se no lugar do estranho, só se pode ser o mesmo sendo o outro, “[…] a complexa escritura dessa rara coisa que somos, numerosa e uma”.[10]
Procedamos, então, a arrancar do gozo feminino o véu da familiaridade. O feminino infamiliar.
Dizer o indizível.