Por Luis Francisco Espíndola Camargo
Atualmente há dois projetos de lei em tramitação no Senado Federal com objetivo de regulamentar a prática do psicanalista. Os dois são de autoria do Senador Telmário da Mota, que colocou em marcha uma forte ofensiva em regular e legislar o campo da psicanálise. Na minha opinião, essas ações são obscuras, pois não sabemos as suas origens, isto é, os grupos ou indivíduos que representa, os interessados na regulamentação, assim como as razões que motivaram a reapresentação desta matéria.
Um único objetivo foi proposto pelo Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras para o ano de 2019, realizar ações junto aos parlamentares visando à rejeição destes dois projetos, a saber, o Projeto de Lei nº 174 de 2017[1] e o Projeto de Lei nº 101 de 2018 [2]. No primeiro, a regulamentação da psicanálise é proposta de forma conjunta com as terapias naturistas; no segundo a regulamentação é proposta de forma independente para a psicanálise
O Projeto de Lei nº 174 de 2017
O PLS 174/2017 tem por objetivo “regulamentar o exercício da profissão de terapeuta naturista”. No momento, esse projeto se encontra na CAS – Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal –, pronto para ser pautado em reunião para votação. O relator do projeto é o Senador Irajá de Abreu. No seu parecer [3] o voto final é pela rejeição. O relator arrolou diversos problemas neste projeto, entre eles o fato que:
[…] a esmagadora maioria das disciplinas abarcadas pela proposição não dispõe de cursos de formação regular cujo currículo e diretrizes sejam dirigidos e fiscalizados pelo Poder Público. Efetivamente, boa parte delas se encontra dentro do campo das terapias ditas alternativas, em relação às quais entendeu o Estado não ser cabível a sua atuação. […] A proliferação da regulamentação profissional deve ser analisada, reiteramos, de forma reservada. A adoção de tais normas pode escamotear, tão-somente, o intuito de criar uma reserva de mercado, que proteja profissionais com alguma formação específica, em detrimento da sociedade e da eficiência econômica do mercado de trabalho, ou ainda, a tentativa de legitimar, por meio de lei, o exercício de profissão cuja eficácia ou base teórica não seja inequivocamente reconhecida (IRAJÁ Apud MOTA, 2017 [2019], p. 4).
O PLS 174/2017 é um Protheus que aglomera diferentes práticas terapêuticas, completamente heterogêneas em um mesmo conjunto. O primeiro artigo do projeto assegura o exercício de Terapeuta Naturista àqueles portadores de diplomas de graduação e pós-graduação. Um parágrafo único é acrescentado, onde o autor insere no conjunto das terapias naturistas outras atividades de atuação terapêutica compreendidas em quatro grupos. Esse agrupamento se apoia em um empreendimento taxionomista sem apresentar quaisquer critérios de seleção e classificação dessas práticas, radicalmente heterogêneas.
Telmário da Mota classifica em quatro grupos as práticas terapêuticas ditas “naturistas”: grupo 1) modalidades de medicina oriental ou terapias orientais; grupo 2) modalidades de terapias ayurvédicas; grupo 3) modalidades de terapias naturais não-orientais e; grupo 4) modalidades de terapias psicanalíticas e psicopedagógicas.
No grupo 4 o autor aloca, junto com as terapias psicopedagógicas, as seguintes terapias psicanalíticas: a psicanálise clínica, a psicanálise didata, a psicanálise infantil, a psicanálise teológica, a psicanálise cognitiva, a psicossomática e a psicanálise hospitalar. Trata-se de um projeto que demonstra um completo desconhecimento do campo fundado por Freud, ao privilegiar em seu texto alianças com a terapêutica, a pedagogia e outras teorias e práticas rivais à psicanálise de orientação freudiana e lacaniana, como a teologia e as terapias cognitivas. Podemos afirmar que se trata de um projeto totalitarista, pois tem como objetivo regular tudo e todos. O parecer de voto pela rejeição, realizado pelo Senador Irajá, aponta indiretamente para essa característica do texto.
O Projeto de Lei nº 101 de 2018
O PLS 101/2018 é mais temerário, pois é mais aperfeiçoado que o anterior, e visa regulamentar independentemente o exercício da prática do psicanalista. No artigo nº 3, a complexa questão sobre o que é um psicanalista é respondida por meio da habilitação em cursos de graduação, pós-graduação (stricto e lato sensu) e cursos livres desenvolvidos por entidades de “notório” saber, com carga horária mínima definida. Duas justificativas são apresentadas pelo o autor do projeto: 1) o reconhecimento da profissão pelo Ministério do Trabalho, a partir de sua inclusão na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) e; 2) o interesse da sociedade e de profissionais na fixação de uma regulamentação mínima para o exercício dessa ocupação. A CBO “tem por finalidade a identificação das ocupações no mercado de trabalho, para fins classificatórios junto aos registros administrativos e domiciliares”[4]. A CBO tem efeitos administrativos e não se confunde com a regulamentação das profissões, que deve ser feita por meio de lei, aprovada por deputados e senadores e conduzida a uma sanção pelo Presidente da República. O relator do PLS 101/2018 na CAS é o Senador Jayme Campos.
As ações atuais do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras
Em julho, representantes do Movimento Articulação foram a Brasília para conversar com parlamentares, incluindo uma conversa com o Senador Irajá de Abreu, relator do PLS 174/2017, que acolheu as ideias do Movimento, ou seja, de não levar adiante o projeto, sugerindo no seu parecer o voto pela rejeição. No entanto, isso não implica que a maioria dos senadores sigam o voto do relator. Portanto, uma ação de Advocacy deve ser necessariamente realizada junto aos senadores. O relatório de Irajá está para ser votado em breve em reunião da CAS.
Em 23 de outubro fomos surpreendidos por um parecer favorável do Senador Jayme Campos sobre o PLS 101/2018 [5], com a inclusão de seis emendas, aperfeiçoando o texto do projeto. Destaque para a emenda do art. 6: “compete à Secretaria de Trabalho e Previdência do Ministério da Economia a fiscalização do exercício da profissão de psicanalista” (CAMPOS apud MOTA, 2018 [2019], p. 5). Essa notícia colocou o Movimento Articulação em estado de urgência, que enviou uma pequena comissão com o objetivo de realizar uma ação de Advocacy[6] junto aos senadores da CAS.
Foi entregue a alguns parlamentares uma carta intitulada “Respostas dos psicanalistas ao PLS 101/2018”. O chefe do gabinete do Senador Telmário da Mota informou que o projeto não será retirado, mas aperfeiçoado. Essa posição indica que iremos enfrentar uma batalha.
Já a conversa com o Senador Jayme Campos foi mais profícua, pois no dia seguinte o relator retirou da pauta da CAS o PLS 101/2018 com o objetivo de realizar um reexame, indicando uma possível mudança de voto.
O Senador Rogério Carvalho, sensível à posição do Movimento, apresentou dois requerimentos sobre o PLS 101/2018. O primeiro, pedindo a realização de uma audiência pública, visando esclarecer os demais senadores. O segundo, solicitando na audiência a presença de um representante do Conselho Federal de Psicologia. O requerimento de uma audiência pública foi muito bem recebido pelo Senador Jayme Campos, pois o alivia da pressão de uma decisão monocrática sobre uma matéria de tema tão complexo. É importante lembrar que existe uma “tendência” do Presidente da República em vetar quaisquer projetos de regulamentação de profissões, que geralmente implicam em criar novas autarquias.
Um representante do Movimento Articulação participou recentemente de uma reunião com psicanalistas de Brasília visando ampliar e fortalecer as parecerias contra a regulamentação da psicanálise e favorecendo uma melhor articulação de ações pontuais e rápidas junto ao Senado Federal.
Considerações gerais
Atualmente a EBP é representada no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras por três membros, Luis Francisco Camargo (Observatório de Legislação, Direitos, Subjetividades Contemporâneas e Psicanálise – FAPOL), Patrícia Badari (Diretora de Biblioteca da EBP) e Paula Borsoi (Conselheira da EBP). Essa pequena comissão, se assim posso chamar, tem se reunido em torno das discussões e encaminhamentos do Movimento.
Sabemos que o problema sobre a regulamentação da psicanálise pelo Estado toca vários princípios da experiência. Alguns psicanalistas chegam até a potencializar os efeitos desastrosos de uma possível regulamentação da prática, associando com a sua degradação ou, até mesmo, com o seu fim. As experiências de regulamentação em certos países da Europa não indicaram ainda esse final trágico.
Freud, em seu texto A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial (1926), além de defender Theodor Reik contra as acusações de charlatanismo realizada junto às autoridades vienenses, nos colocou diante da questão sobre o que fazer com os “analistas leigos que cometem absurdos e abusos e, portanto, prejudicam os pacientes e a reputação da psicanálise” (FREUD, 2014 [1926], p. 180). Essa falta de resposta para uma questão tão complexa é uma das principais justificativas utilizadas por Telmário da Mota em seus dois projetos. Sobre a interdição da prática da psicanálise para leigos, Freud indica que:
equivale, digamos, a uma tentativa de repressão. Se não é possível impedir a atividade dos analistas leigos, não havendo apoio do público na luta contra eles, não seria mais adequado levar em conta a realidade de sua existência, oferecendo-lhes oportunidades de formação, adquirindo influência sobre eles e estimulando-os com a possibilidade da aprovação da classe médica e da solicitação para o trabalho em conjunto, de modo que eles tenham interesse em elevar seu nível ético e intelectual? (FREUD, 2014, p. 181)
Atualmente verificamos a ocupação do campo da psicanálise por grupos organizados de religiosos, que oferecem cursos de formação em “psicanálise” cotejados pelas doutrinas cristãs, onde estão incluídas a análise pessoal e a supervisão de casos. Trata-se de um grande equívoco, pois coloca a psicanálise diante do tribunal da religião, sendo que, tanto Freud, como Lacan, pensavam a psicanálise diante do tribunal da ciência. Sobre esse tema, um debate foi realizado em 2014 na IX Jornada da EBP-SC, intitulada Psicanálise, crenças, leis.
Lacan em seus textos A psicanálise e o seu ensino (1957), Situação da psicanálise em 1956 (1957) e A psicanálise verdadeira, e a falsa (1958) apresenta um debate que pode nos ajudar a esclarecer o que está realmente em jogo na regulamentação da psicanálise. É um tema que perpassa o ensino, a formação do psicanalista e o lugar destinado à fala e ao inconsciente, respectivamente. Trata-se de um assunto que toca os Princípios Diretores do Ato Analítico, definidos por Éric Laurent na assembleia da Associação Mundial de Psicanálise durante o congresso de Roma em 2016. Destaco o quinto princípio.
O laço da transferência supõe um lugar, o “lugar do Outro”, como diz Lacan, que não é regulado por nenhum outro específico. É aquele no qual o inconsciente pode se manifestar na maior liberdade de dizer e, portanto, de experimentar seus logros e dificuldades. É também o lugar no qual as figuras do parceiro da fantasia podem desdobrar-se em seus jogos de espelhos mais complexos. Por essa razão, a sessão psicanalítica não suporta o terceiro e seu olhar exterior ao próprio processo em questão. O terceiro se reduz a esse lugar do Outro. Esse princípio exclui, assim, a intervenção dos terceiros autoritários querendo atribuir um lugar para cada um e um objetivo já estabelecido para o tratamento psicanalítico. O terceiro avaliador se inscreve, assim, na série dos terceiros cuja autoridade o afirma do exterior daquilo que está em jogo entre analisante, o analista e o inconsciente (LAURENT, 2006, p. 7)
Um sindicato tem como um dos seus objetivos defender uma classe de profissionais de uma sociedade de direito público ou privado. Já os conselhos de classe têm como objetivo defender a sociedade da classe de profissionais que causam prejuízo por meio do exercício de suas profissões. No sindicato o vetor vai da classe profissional à sociedade; nos conselhos o vetor vai da sociedade à classe profissional. O sindicato está do lado da classe, enquanto os conselhos do lado da sociedade. Essa diferenciação é importante, pois a justificativa principal da regulamentação da psicanálise é defender a sociedade dos profissionais que causam prejuízo, devido aos abusos causados pelos desvios técnicos e éticos de suas “profissões”, onde “a ausência completa de regulamentação gera um evidente problema de saúde pública da população brasileira, que se vê à mercê de profissionais despreparados ou, mesmo, mal-intencionados, sem que exista garantia de uma mínima capacidade de exercício da profissão” (MOTA, 2017, p. 5). O Senador Telmário da Mota demanda garantias, e isso recai necessariamente sobre a formação do analista.
Para um maior aprofundamento do debate sobre a regulamentação da psicanálise no Brasil, sugiro a leitura de duas coletâneas de textos de autoria de colegas integrantes do Movimento Articulação: 1º) Ofício do psicanalista: formação vs. regulamentação (2009) e; 2º) Ofício do psicanalista: por que não regulamentar a psicanálise (2019).
Sabemos que a resposta de Lacan sobre a garantia da psicanálise é relançada por meio de uma definição circular sobre a questão do psicanalista: “uma psicanálise, padrão ou não, é o tratamento que se espera de um psicanalista” (LACAN, 1998, p. 331). Para Lacan o psicanalista é o produto de uma análise, uma análise levada aos limites da experiência, da qual a passagem do analisante ao analista está no âmago da questão sobre a formação do analista. Essa passagem Lacan denominou de passe. Portanto, a pergunta sobre o que é uma psicanálise é relançada para a questão sobre a formação do psicanalista. Foi por isso que na epígrafe da Proposição de 9 de outubro Lacan avisou que “antes de lê-la, […] convém entendê-la com base na leitura, a ser feita e refeita, do meu artigo Situação da psicanálise e formação do analista em 1956” (LACAN, 2003, p. 248). Uma definição de psicanálise não pode ser exterior ao falasser, é a resposta que cada um dá para sua própria experiência de análise levada até os seus limites. Nesse sentido, não é possível um Outro que possa fornecer uma definição de psicanálise que oriente a regulamentação da prática e da experiência. Uma análise é finita, infinita e indefinida.