Por Isabel do Rêgo Barros Duarte
Psicanalista membro da EBP/AMP
Os grandes eventos que fazem nossa comunidade trabalhar dão o tom dos desafios com os quais nos deparamos: nas surpresas da clínica, nas reviravoltas do mundo e nos impasses institucionais da tarefa de fazer uma Escola Una.
O XI Enapol, intitulado “Ódio, cólera, indignação: desafios para a psicanálise”, não foi diferente. Na verdade, teve o mérito especial de se apresentar como uma importante tomada de posição. Digo “tomada de posição” porque acredito que, orientados pela responsabilidade de cada um em sua relação singular com a psicanálise, podemos nos diferenciar da “tomada de partido” que se refere às identificações das quais uma análise se afasta. Poder compartilhar elaborações sobre os temas pungentes e desnorteantes de nossa época constituiu um verdadeiro respiro, necessário à tarefa dos analistas de funcionarmos como “pulmão artificial”, como indica Lacan[1].
O título, o argumento e os eixos temáticos já ofereceram balizas. Porém, foi no vivo do encontro e das apresentações que ficou clara a preocupação dos analistas de nossa comunidade com o tema da segregação, que perpassou as diversas mesas, plenárias e simultâneas. Não é à toa que uma das frases top 3 mais referidas ao longo do Encontro foi a indicação de Miller, em Extimidad[2], de que “a raiz do racismo é o ódio de meu próprio gozo”, que aparece como “ódio da maneira particular segundo a qual o Outro goza”, já que “o Outro está no interior de mim mesmo em posição de extimidade”.
Se essa indicação foi tão trabalhada nas diversas apresentações é sinal de que ela não é óbvia nem unívoca e pode gerar diferentes elaborações. Diante disso, gostaria de fazer um comentário sobre uma questão que me tocou especialmente no que concerne a essa ideia.
Localizar na raiz do racismo o ódio ao gozo do Outro, que é o meu próprio gozo, aponta para uma condição humana estrutural na raiz do racismo. Isso nos permite escapar de interpretações moralizantes que levariam a um maniqueísmo politicamente improdutivo. Porém, se tomamos essa indicação como sendo a definição do racismo, podemos cair numa espécie de silogismo perigoso que pode levar, por exemplo, ao argumento do “racismo ao contrário”, que serve de justificativa da manutenção de práticas de segregação.
Se ignoramos outros aspectos presentes no fenômeno do racismo, em especial o fato dele ser efeito, na prática, de relações de poder, poderíamos afirmar que, se esse ódio ao gozo próprio é estrutural, todos somos iguais perante o racismo. Assim, um branco seria racista frente a um negro, que também seria racista frente a um branco. Um homem poderia ser racista em relação a uma mulher, mas uma mulher, uma feminista, por exemplo, poderia ser racista diante do gozo masculino. Afirmar isso seria ignorar que, pelo menos nesse mundo em que vivemos, os privilégios estão distribuídos desigualmente e com clareza. É claro que o ódio existe em ambos os vetores, mas nem todos podem ser chamados de racismo.
Miller, nesse mesmo texto, cita Lacan em O aturdito: “uma raça se constitui pelo modo como transmite, na ordem de um discurso, os lugares simbólicos”[3]. O racismo não pode ser pensado dissociado dessa definição de raça como efeito de discurso, discurso que define lugares simbólicos, mas que também marca o real do corpo quando objetaliza sujeitos, conforme vimos exemplificado em casos clínicos muito interessantes apresentados ao longo do Encontro.
Para mim, fica a boa sensação de que nossa comunidade está se debruçando, devidamente, sobre temas dificílimos, porém incontornáveis, de nossa época. Espero que possamos seguir compartilhando nossas elaborações para que estas continuem pulsantes e não se tornem afirmações dogmáticas.