Seguimos com a proposta inaugurada pela rubrica “Porvir” da Correio Express, que é a de dar lugar às movimentações, elaborações e inquietações que nossos encontros por acontecer tanto suscitam, ainda num tempo muito anterior ao momento do evento em si. Neste sentido, tomamos nossos eventos como acontecimentos que, em uma viva pulsação, podem provocar, por um tempo distendido, trabalhos singulares, precipitações de bons encontros e, ainda, novas e belas (re)amarrações em nossa comunidade.
Nos últimos números da Correio Express, a rubrica “Porvir” foi dedicada ao IX ENAPOL. O presente número inaugura uma nova série, dedicada ao XII Congresso da AMP, que irá acontecer entre os dias 13 a 17 de abril de 2020 em Buenos Aires, em torno do tema O sonho: sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano.
Convidamos Lucíola Freitas de Macêdo, membro da EBP/AMP e do Comitê de Ação da Escola Una, para dar início a essa nova série de trabalhos. A ela, perguntamos sobre a função do Comitê nos cuidados com o Congresso da AMP e também lhe pedimos um texto – pedido a que Lucíola tão gentilmente nos respondeu com o belíssimo trabalho “Sonho, poesia e política”, no qual vocês podem mergulhar com um “clic”, a seguir.
C.E: O que é o Comitê de Ação da Escola Una e como ele se insere nos cuidados com o Congresso e também a uma contribuição sobre o tema?
Lucíola Freitas de Macêdo: Como bem afirma Éric Laurent, “os congressos da AMP são momentos decisivos para realizar uma comunidade de trabalho entre Escolas, entre psicanalistas de línguas e de horizontes diversos, em uma palavra, para fazer existir a Escola Una”[1]. A Associação Mundial de Psicanálise reúne sete Escolas localizadas em distintos países e continentes. Durante o II Congresso da AMP, no ano de 2000, em Buenos Aires, decidiu-se pela criação da Escola Una, nome dado para aquilo que os membros da AMP compartilham entre si: a orientação lacaniana. A Escola Una não é uma instituição, pois não tem sede nem estatuto. É uma experiência que visa manter viva a psicanálise de orientação lacaniana. Concomitantemente à fundação da Escola Una, constituiu-se o seu primeiro Comitê de Ação, a fim de “suscitar o debate na comunidade internacional, situar os temas cruciais para a psicanálise e para a época e definir um programa que provoque a reflexão. O Comitê concentra-se em ações precisas, assumindo uma função de avaliação crítica das atividades fundamentais das Escolas e da AMP”[2]. Cabe a ele animar e orientar as atividades preparatórias aos Congressos da AMP, em todas as línguas da Escola Una. Com esta finalidade, organiza e edita Papers[3], publicação online já disponível no site do XII Congresso. O Comitê de Ação em exercício é coordenado por Clara Holguin (NEL) e formado por um membro de cada Escola da AMP: Lucíola Macêdo (EBP), Valeria Sommer-Dupont (ECF), Laura Canedo (ELP), Manuel Zlotnik (EOL), María Cristina Aguirre (NLS), Paola Bolgiani (SLP).
[1] Cf. LAURENT, É. Le Réveil du rêve ou l’esp d’un rev. In:
https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/19-09-11_el-despertar-del-sueno-o-el-esp-de-un-sue.html.
[2] Cf. https://www.wapol.org/pt/acercaamp/Template.asp?Archivo=escuela_una.html.
[3] Cf.https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&file=el-tema/papers.html.
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DESORDES CREATIVAS – Coruja
Sonho, poesia e política
Por Lucíola Freitas de Macêdo
Psicanalista membro da EBP/AMP e do Comitê de Ação da Escola Una.
Para dar início à série de textos dedicados ao próximo Congresso da AMP que a rubrica Porvir da Correio Express inaugura com este número, retomo um breve ensaio que produzi a partir de meu encontro com uma surpreendente assertiva de Jacques-Alain Miller em sua “Crônica do Ano Zero” na edição n.721 de Lacan Quotidien. Em sua cruzada rumo “à política em ato no Campo Freudiano”[1], JAM inserta no coração pulsante da política, o que comumente se considera uma das suas antípodas, a poesia.
Para tanto, lança mão de um poeta, e de um poema. Não qualquer um, mas do Conde de Lautrémont, pseudônimo de Isidore Ducasse, “o poeta maldito”, cuja incandescência da escrita, aliada a uma extraordinária ousadia e liberdade de criação, fizeram dele precursor do surrealismo e das vanguardas do século vinte. Eis o trecho extraído do célebre poema “Os cantos de Maldoror”:
A poesia deve ter por finalidade a verdade prática. Ela enuncia relações que existem entre os primeiros princípios e as verdades secundárias da vida… A missão da poesia é difícil. Ela não se mistura a eventos da política ou à maneira como se governa um povo, não faz alusão aos períodos históricos, aos golpes de Estado, aos regicídios, às intrigas das cortes. Ela não fala das lutas que o homem engaja, por exceção, consigo mesmo, com suas paixões. Ela descobre as leis que fazem viver a política teórica, a paz universal, as refutações de Maquiavel, as cornetas das quais as obras de Proudhon se compõem, a psicologia da humanidade. Um poeta deve ser mais útil do que qualquer cidadão de sua tribo[2].
O trecho citado esclarece, por acréscimo, o laço entre psicanálise e política: onde Ducasse inscreve a poesia, Miller sublinha a psicanálise em seu modo de operar com as palavras. O modus operandi da psicanálise, como o da poesia, não é direto nem constrói sistemas. Ao invés disto, a psicanálise tem a chance de operar como um vetor de S (A/) no campo político[3].
Como é dado à poesia “descobrir as leis que fazem viver a política teórica”? De que maneira se dá essa passagem, em nada óbvia, do poético ao político? Eis o que buscaremos, através da obra poética e testemunhal de Primo Levi, demonstrar.
Primeiro movimento: O sonho é a política da poesia
Ao ler Mil sóis, coletânea de poemas de Primo Levi recentemente publicada no Brasil, cogito: Levi parece escrever poemas como quem sonha. Este pensamento me vem à mente como uma espécie de devaneio, mobilizada pelo impacto da leitura da obra em seu conjunto. À medida que avanço na leitura, me entrego à sua poesia, deixando-me conduzir por seus poemas: “Como um vidente a conduzir um cego/ Como uma dama que o conduz na dança”[4]. Ainda embalada pela música dos versos, constato que Levi não apenas escreve poemas como quem sonha, mas que sua poesia se estrutura como um sonho.
O poema tem na obra deste escritor um caráter fundador, e uma anterioridade lógica em relação à prosa. Levi insertou poemas como epígrafes em todos os seus livros de cunho testemunhal. Seu primeiro testemunho, É isto um homem?[5], tem como epígrafe o poema Shemá[6], donde extrai também o verso que dá título ao livro. A poesia comparece do início ao final, como contracanto à narrativa testemunhal. As menções aos versos da Divina Comédia perpassam a obra, estando Dante para Primo, como Virgílio estaria para Dante.
Os poemas, tal como os sonhos, irrompem. Acontecem à sua revelia. É ele mesmo quem o diz, como poeta bissexto que se considera, que escrever versos não tem nada a ver como nenhuma outra atividade mental que conheça, e tal como os cogumelos, os poemas brotam inesperadamente, onde menos se espera[7]. Diferentemente do testemunho, “em primeira pessoa”, a poesia advém do “Es”, de um lado de si próprio que percebe como obscuro, noturno, visceral, e em grande parte inconsciente[8].
Como bem observa Marco Belpoliti, sua poesia, como também muitos de seus contos, são “resíduos diurnos de sua parte noturna, sonhos de olhos abertos que afloram e falam a língua estranha e misteriosa da literatura”[9], não sendo redutíveis às fórmulas e teoremas da química, seu ofício diurno, aquele no qual se sente mais confortável, em terreno seguro. Conto e poesia, tal como os sonhos, laboram sobre um material proveniente “de uma veia inquieta e inquietante de si mesmo”, buscando na estrutura do verso uma forma sobre a qual derramar seu material incandescente.
Em A fugitiva, Levi escreve, “compor uma poesia digna de ser lida e recordada é um dom do destino: acontece a poucas pessoas, fora de toda regra e vontade, poucas vezes na vida”[10].
O escritor narra, através do personagem deste conto, como se davam as irrupções da escrita em versos: tinha a sensação “de ter uma poesia no corpo, pronta para ser fisgada no voo e pregada no papel como uma borboleta”. Tratava-se da mesma sensação que antecedia ataques epilépticos: sentia a fulguração de um leve assovio nos ouvidos e um arrepio de espasmo a percorrê-lo da cabeça aos pés. Dissipados o assovio e o espasmo, em poucos instantes achava-se lúcido, com o grão da poesia claro e distinto, irradiando-se em todas as direções, como um organismo que cresce e treme, como se fosse uma coisa viva. Tinha apenas que escrevê-lo.
Segundo movimento: A poesia é o sonho da política
A poesia é o sonho da política quando permite escrever o inimaginável ou figurar o inominável, contornando com as palavras o furo do trauma, esgarçando ao menos um pouco sua opacidade, permitindo roçar, e até mesmo forçar os limites do representável. Quando deixa entrever a cesura, a lacuna, cernindo o que escapa ao dizível ou pensável, diante da insuficiência das palavras em dizer dos encontros com o real traumático.
A poesia é o sonho da política, ainda, quando sua escrita se torna veículo de transmissão do “dever de memória”, sem que para isto seja preciso recorrer ao engodo de recompor o que se apresenta como lacunar, índice do inominável, com figuras saturadas de sentido, ou com detalhes descritivos que no mais das vezes resultam na obscenidade ou na impostura.
Em alguns poemas, Levi lança mão da prosopopeia e do mundo onírico através de um fantástico bestiário, que não deixa de evocar, às portas do Juízo Final, a Arca de Noé.
Há aqueles de cunho ético e/ou político, como “O elefante”, “Um rato”, “A mosca”, e “O dromedário”: “Pra que tantas rixas, guerras, querelas?/ Vocês só precisam me imitar. Sim, sou um servo, mas o deserto é meu:/ Não há servo que não tenha seu reino/ Meu reino é a desolação/ Não conhece limites”[11].
Outros versam sobre temas existenciais, tal qual “O caracol”; e “Velha toupeira”: “O que há de estranho? Eu não gostava do céu/ Então decidi viver só e no escuro”[12].
Ou sobre assuntos eminentemente femininos. Em “Aracne”, por exemplo, o eu lírico se metamorfoseia em aranha: “Tecerei outra teia para mim/ Paciência./ Tenho paciência longa e mente curta,/ Oito pernas e cem olhos,/ mas mil tetas fieiras,/ E não me apraz o jejum/ E gosto de moscas e machos/… Sentarei no centro/ E aguardarei que um macho venha,/ Suspeitoso, mas ébrio de vontade,/ Encher-me a um só tempo/ O estômago e a matriz” [13].
Sentimo-nos, ainda, mergulhar em sonho, quando sua poesia se espraia por entre objetos e obras humanas, como em “Uma ponte”: “Não é como as outras pontes,/ Que aguentam a nevasca dos séculos,/ Para que os rebanhos rumem a pasto e água/ Ou gente em festa passe ponto a ponto./ Esta é uma ponte diferente,/ Que goza se você para a meio caminho”[14].
Ou entre os desígnios da natureza, onde as tensões e reversões da mudez em voz e em grito, são as mais pungentes, tal qual “Meleagrina”, e “Agave”: “Sou muda. Falo apenas minha língua de planta,/ Difícil de você entender, homem/ É uma língua em desuso…/ Esperei muitos anos até expressar/ Esta minha flor altíssima e desesperada/ Feia, lenhosa, rígida, mas lançada ao céu/ É nossa maneira de gritar que/ Vou morrer amanhã: me entende agora?”[15].
Ademais aspectos estruturais, alguns poemas recolhem e retrabalham explicitamente o conteúdo dos sonhos. É o caso de Wstawac’ (Levantar), epígrafe do livro A trégua:
Sonhávamos nas noites ferozes
Sonhos densos e violentos
Sonhados de corpo e alma:
Voltar; comer; contar.
Então soava breve e abafado
O comando da aurora:
“Wstawac´”;
E no peito o coração partia.
Agora reencontramos a casa,
Nosso ventre está saciado,
Acabamos de contar.
É tempo. Logo ouviremos de novo
O comando estrangeiro:
“Wstawac´”[16].
O “sonho dentro do sonho”, a partir do qual redige o poema-epígrafe, é também o limiar sob o qual se fecha o livro, com a narrativa do mesmo sonho traumático, como se quisesse fixá-lo, imobilizá-lo, a fim de que não mais invadisse as suas noites:
É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único na substância. Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho, ou no campo verdejante: um ambiente, afinal, plácido e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça me domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas às vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se um caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager. De resto, eram férias breves, o engano dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno, o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantem, Wstawac´[17].
Ao contrário do que havia dito aos seus entrevistadores no dia seguinte à publicação de A trégua, quando em 1963 declarou que nada mais diria sobre o campo de concentração, e que tudo o que tinha para dizer já estava dito – a escrita e reescrita do sonho traumático não cessou, atravessando como um fio invisível a obra do artífice. Através do trabalho do sonho o poema emerge, uma e outra vez para Levi, como uma “secreção diurna” do sonho traumático, em seu incansável esforço, de figurar o “buraco negro” de Auschwitz[18].
Terceiro movimento: A política é a poesia do sonho
Eis que o sonho traumático é novamente mencionado, já nas primeiras linhas do prefácio de seu último livro Os afogados e os sobreviventes, híbrido de testemunho e ensaio, publicado em 1986, cujo título é tributário da Divina Comédia dantesca.
Neste volume, encontramos novamente versos de um poema como epígrafe. Aqueles da Balada do velho marinheiro, de Coleridge, os mesmos que já havia inserido nas primeiras linhas do poema “O sobrevivente”, em 1984, e que escolheu como título da coletânea de poemas Em hora incerta, publicada no mesmo ano:
Desde então/ em hora incerta,/ Aquela pena retorna,/E se não acha quem o escute/ No peito o coração lhe queima./ Revê os rostos dos companheiros/ Lívidos na luz primeira,/ Cinzas de pó de cimento,/ Indistintos na névoa,/ Tingidos de morte em sonos inquietos?/ À noite movimentam as mandíbulas/ Sob as pedras pesadas dos sonhos/ Mastigando uma raiz que não há./ “Pra trás, fora daqui, gente perdida,/ Adiante. Não suplantei ninguém/ Não usurpei o pão de ninguém/ Ninguém morreu no meu lugar. Ninguém./ Retornem ao seu nevoeiro./ Não tenho culpa se respiro/ E como e bebo e durmo e visto roupas”[19].
Eis o que Levi escreve nas primeiras linhas do prefácio: “As primeiras notícias sobre os campos de extermínio nazistas começaram a difundir-se no ano crucial de 1942. Eram notícias vagas, mas convergentes entre si: delineavam um massacre de proporções amplas, de uma crueldade tão extrema, de motivações tão intrincadas que o público tendia a rejeitá-las em razão de seu próprio absurdo”[20].
Tal rejeição havia sido prevista com muita antecipação pelos agentes do extermínio. Muitos sobreviventes recordam que os SS se divertiam, avisando cinicamente aos prisioneiros: “Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhes dará crédito”[21]. E em seguida, menciona uma vez mais o sonho traumático: “esse mesmo pensamento brotava, sob a forma de sonho noturno, do desespero dos prisioneiros. Quase todos os sobreviventes, oralmente ou em suas memórias escritas, recordam um sonho muitas vezes recorrente nas noites de confinamento”[22].
É preciso situar as circunstâncias que levam Primo a retomar em Os afogados e os sobreviventes, de modo lancinante, a temática dos campos de concentração. Trata-se de uma resposta às teorias revisionistas e teses negacionistas em voga nos anos setenta e oitenta. Tais teses reabriram a ferida. Sabemos que o trauma não é somente essa “uma única vez”, mas também o discurso negacionista, quando este vem dizer que nada disso existiu. De novo, o vórtice.
A pena que retorna, quatro décadas após o confinamento indica não mais o aguilhão de um mal sofrido, mas aquele de uma paradoxal e presumida culpa, a culpa dos sobreviventes: a suposição “de que cada qual seja o Caim do seu irmão e cada um de nós – desta vez digo ‘nós’ num sentido muito amplo, ou melhor, universal) tenha defraudado seu próximo, vivendo em lugar dele. É uma suposição que corrói; penetrou profundamente, como um carcoma; de fora não se vê, mas corrói e grita”[23].
Levi examina o sentimento de culpa vinculando-o ao da vergonha: “Você tem vergonha porque está vivo no lugar de um outro?”[24]. Era impossível evitar esta pergunta.
Não se tratava apenas da vergonha própria a cada um, como também de uma vergonha alheia: “O mar de dor, passado e presente, nos circundava, e seu nível subia… até quase nos fazer submergir… Era inútil fechar os olhos… entre nós, os justos experimentaram remorso, vergonha, dor, pelo crime que outros, e não eles, tinham cometido… demonstrava que o gênero humano, nós, em suma, éramos capazes de construir uma quantidade infinita de dor… Basta não ver, não ouvir, não fazer[25].
François Rastier[26] enfatiza o sentimento lancinante, a despontar, do acaso de ter sobrevivido. A suposição de estar vivo no lugar de outro, assumiu, para Levi, a forma de um possível erro de chamada, na qual um vizinho poderia ter sido levado em seu lugar para o gás. Questão que se deixa entrever já em “Shemá”, de janeiro de 1946, epígrafe de É isto um homem?, E mais explicitamente em “O sobrevivente”, quatro décadas mais tarde: “Não suplantei ninguém,/ Não usurpei o pão de ninguém,/ Ninguém morreu no meu lugar. Ninguém”[27].
A pena que retorna como evocação e conjuração, simultaneamente, neste poema, não mais se refere ao comando da madrugada, encarnado na voz do carrasco, a bradar “Levanta!”. Ela advém, mergulhada em angústia e culpa, do retorno do espectro dos submersos, estes aos quais emprestará sua voz, por delegação, a fim de contar a demolição levada a cabo, a obra consumada, aquela que ninguém narrou: “não saberia dizer se o fazemos por uma obrigação moral para com os emudecidos, ou para nos livrarmos de sua memória: com certeza o fazemos por um forte e duradouro impulso”[28].
Podemos inferir que a política seja a poesia do sonho, ainda, ao percorrermos o caminho da gênese poética[29] da zona cinzenta: antes desta se constituir como um conceito, o cinzento aparece de modo expressivo e insistente em sua poesia, narrativa testemunhal, contos, artigos e ensaios, inscrevendo, no conjunto da obra, uma temporalidade: num primeiro tempo aparece de modo difuso, momento no qual prevalecem as associações entre a cor, o ambiente e os afetos plúmbeos que não encontram palavras capazes de expressá-los; num segundo tempo ganha contornos poéticos, passando a existir por toda parte como figura de linguagem; até que num terceiro tempo será a matéria incandescente a partir da qual Levi forjará um “novo elemento”, não propriamente um novo elemento químico, como sonhava em sua juventude, quando a tabela periódica de Mandelev “era a poesia, maior e mais solene que todas as poesias digeridas no ginásio”[30].
Nas palavras de Giorgio Agamben, Levi conseguiu isolar algo parecido com um novo elemento ético: a inquietante zona cinzenta. Esta da qual deriva a longa cadeia de conjunção entre oprimidos e opressores: “uma alquimia cinzenta, incessante, na qual bem e mal, e com eles, todos os metais da ética tradicional alcançaram seu ponto de fusão” [31].