Por Renata Martinez – Psicanalista membro da EBP-AMP.
Como apresentar o projeto “Leituras em Cena”? Penso que uma elaboração do presente não se faz sem sua história e resolvi trazer o que vem sendo esse projeto. O verbo no gerúndio marca um trabalho em construção, um processo, que precisa dos parceiros para existir. É no encontro que se tece uma trama e que fisgamos algo de nossa aposta para seguir em frente. Vou explicar!
O “Leituras” tornou-se uma Atividade da Biblioteca da Seção Rio nessa na diretoria 2019-2021[1], mas nossos encontros tiveram início em março de 2018. Na época, Maricia Ciscato, Isabel do Rêgo Barros Duarte e eu, pensávamos numa atividade conjunta entre psicanalistas e artistas que se encontrariam quinzenalmente para “trocar ideias e experiências” sobre o que posso resumir como: a angústia experimentada no que é ser o que somos – psicanalistas e artistas – diante de nossa prática e do mundo hoje.
A sensação cada vez mais frequente de “fim de mundo”, ou melhor, do fim de um mundo conhecido não é novidade entre nós. Os títulos de nossas Jornadas, Encontros, Congressos atestam isso, os significantes “hoje”, “no século XXI”, “na contemporaneidade” e tantos outros que marcam uma diferença ou ruptura com o antes foram e ainda são difíceis de abandonar. Como nos disse Miller, em O Inconsciente e o corpo falante, “a psicanálise muda. Não é um desejo, mas um fato.”[2]. E, para alcançar no horizonte a subjetividade de sua época – direção que seguimos com Lacan –, os psicanalistas devem levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os quais a psicanálise se estabeleceu. Somos confrontados com essa “nova ordem” e esse “outro real” primordialmente na lida com nossa clínica, mas também com a guinada política “Campo Freudiano, ano Zero”, com a criação de Zadig e também com os mais variados acontecimentos aos quais estamos submetidos nos últimos tempos dentro e fora da nossa comunidade. O “Leituras em cena” tem sido uma maneira de tentar lidar com tudo isso.
Muitas das ideias que me impulsionaram a construir essa atividade, em parceria com minhas colegas, surgiram das discussões realizadas no Seminário “A psicanálise do fim do mundo”[3] conduzido há dois anos por Marcus André Vieira. Ali, investiga-se a função do objeto como causa e como resto a partir da ideia de sua crise. O objeto a em crise na clínica e no discurso nos interroga e nos apresenta problemas. Como abordá-los?
Meu desejo – também compartilhado pelas colegas – era explodir as fronteiras, trabalhar com outras línguas de tratamento do mal-estar. Assim, a arte, mais especificamente o teatro, pelo impacto da palavra e pela presença dos corpos – atores e plateia –, pareceu um caminho a seguir. E foi nessa busca que a Cia dos Atores e a peça Insetos publicada pela editora Cobogó se apresentaram ao projeto. Nesse momento, já tínhamos Dinah Kleve, Natasha Berditchevsky, Patricia Patterson e Thereza De Felice trabalhando conosco.
O trabalho inicial se debruçou sobre a peça e sua atualidade. Que potência de transmissão! Encenação e texto fazem viva a frase de Oscar Wilde: “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida…” A peça comemora os 30 anos da Cia dos Atores, premiado grupo carioca. O texto, do jovem dramaturgo Jô Bilac, foi intensamente trabalho pelo diretor e pelos atores que, durantes os ensaios, recebiam fragmentos por e-mail, e, coletivamente, puseram a mão na massa, criaram os personagens e seu próprio texto adaptado para a montagem no palco.
Sem dar spoiler, posso dizer que, com um humor pungente, na voz de gafanhotos, grilos, varejeiras, uma joaninha trans, louva-Deus e baratas, paixões como ódio, cólera e indignação ou questões como segregação e fascismo ganham a cena e nos co-movem mais que o mais combativo discurso. A dimensão política da peça é categórica e reafirmada pelo crítico Ruy Filho que, em seu texto ao final do livro, pergunta-se se é possível ao Rio de Janeiro não tratar os assuntos – teatro e política – como iguais.
Como bem nos descreveu Maricia Ciscato num texto ainda inédito: “a peça nos desloca de nosso esforço constante de nos definirmos, nos desloca de nossas identidades fechadas e idealizadas, nos provoca, nos abre. (…) trabalha com uma tensão permanente: ela é uma leitura social, mas nos toca por dentro, como se por dentro fossemos nós mesmos esse plural multifacetado das ruas do país (e somos), nem bons nem maus, com nossos dejetos procurando aberturas para dar lugar a outras potências.”[4].
Interessei-me imediatamente pelo engajamento e força da palavra escrita e encenada. Seriam frutos do processo coletivo desse trabalho? Como sustentar essa posição tão cara a nós psicanalistas? Esse interesse despertou curiosidade nos artistas e fomos convidados para dois encontros, duas rodas de conversa. Uma no palco do teatro após o espetáculo com diretor, atores, editora e a plateia e a outra na Carpintaria, uma galeria de arte que aposta no diálogo com outras linguagens. Ali, numa conversa animada, nos misturarmos às artes plásticas e aos atores na exposição “Perdona que no te crea” cujas fronteiras se queriam mesmo borradas.
Estávamos, nas duas ocasiões, ocupando espaços na cidade, trazendo a tona discussões fundamentais em tempos tão duros e sombrios. A dimensão política da nossa iniciativa ressoou fazendo com que fosse resgatada a ideia de Laurent, já tão debatida entre nós, do analista cidadão “…um analista que participa; um analista sensível às formas de segregação; um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora”. “Os analistas não só devem escutar, mas também precisam saber transmitir (…) o interesse que tem para todos a particularidade de cada um.”[5].
Fazendo um paralelo dessa posição do analista com o lugar do artista no mundo, extraí de “O que resta. Arte e crítica de arte” de Lorenzo Mammì, o seguinte ponto: “A arte encontra espaços sempre mais precários e problemáticos no mundo contemporâneo; (…) cabe ao artista (…) detectar os espaços onde essa atividade possa ainda ser exercida com um grau aceitável de liberdade e consistência”[6]. Podemos acrescentar, e também perguntar aos artistas, se não caberia a eles – como acreditamos caber aos analistas – além de detectar, construir esses espaços. Espaços que temos chamado de oásis, termo usado por Hannah Arendt em O que é a política?[7].
O “Leituras em Cena” vai da psicanálise ao teatro na busca de outro contorno e tratamento dado ao objeto. A arte, assim como a psicanálise, utiliza um certo material para construir suas elaborações. Costumamos dizer que a psicanálise trabalha com os dejetos do mental que atravessam o corpo: os tropeços, atos falhos, os sonhos, os lapsos, os sintomas, trazendo do inconsciente o que há de mais singular num sujeito e, com isso, a possibilidade de um rearranjo, uma espécie de “acerto de contas”. A arte também aborda esse tipo de questão. As criações artísticas também partem daí, de questões, digamos, “escondidas”, “renegadas”, muitas vezes desconhecidas do artista. Jô Bilac, autor de Insetos, em seu texto escrito para abertura do livro, diz que “não faz análise, não tem religião” e, assim, “compreende seu ofício como uma oportunidade de dar seus pulos”[8].
O “Leituras em Cena” interessa-se, então, pelos “pulos” dados pelos artistas e também pelo modo de transmissão desses “pulos”, sem a pretensão, obviamente, de elaborar uma psicanálise da obra de arte ou do artista. Pela via do teatro, o projeto visa seguir, como nos descreve Marcio Abreu em Escritas, “a criação da palavra escrita e seu caminho de encarnação, escuta e materialidade. O entendimento da palavra como ação – na medida em que dispara movimentos, desdobra-se, reverbera e deixa vestígios (…)”[9][1].
Para enlaçar teoricamente e dar corpo a essa pluralidade de ideias, recentemente a coordenação do projeto formou um cartel: “Psicanálise, arte e política: variações em torno do objeto”, com Marcelo Veras como mais-um. Há muito trabalho pela frente e espero poder continuar compartilhando essa experiência com vocês.