Seguindo a proposta da nova Diretoria de Cartéis e Intercâmbio nacional, começamos a garimpar, na EBP-Rio, atividades que já acontecem e se caracterizam pela aposta de interlocução com outros campos de saber, assim como por sua abertura ao “fora” da Seção. Neste sentido, nos aproximamos tanto das atividades abertas à cidade, quanto daquelas que entram em diálogo com outros campos de saber e outros atores que não só psicanalistas. Nossa Seção vem se abrindo nessa direção, convidando a pluralidade de discursos para entrarem em nossa casa, assim como propondo atividades em outros espaços, naturalmente mais diversos e, por isso mesmo, acessíveis a um público mais heterogêneo.
Nesse movimento, vimos registrando eventos alinhados com essa proposta: algumas atividades já aconteciam há algum tempo e outras nasceram com a nova diretoria. Nesse primeiro registro, para essa nova rubrica da Correio Express, traremos uma “palhinha” do que aconteceu na atividade de “Cinema e psicanálise” no mês de junho de 2019.
Ana Tereza Groisman
Psicanalista membro da EBP-AMP e Diretora de Cartéis e Intercâmbio da EBP-RIO.
Cinema e Psicanálise
Essa atividade foi criada por inciativa da então diretora da EBP-Rio, Ângela Bernardes.
Ana Martha Wilson Maia e eu nos colocamos em contato com o cinema Jóia, visando produzir um debate que não ficasse restrito aos participantes da EBP. De fato, entre o público que tem participado, temos contado sempre com psicanalistas de diferentes escolas e orientações, e com habitués do cinema, de maneira que os debates são sumamente ricos e multifacetados.
No ano passado, coordenamos o Ciclo “A subversão nos tempos atuais”, durante o qual promovemos discussões sobre temas como transexualidade, revolução nas comunicações, inteligência virtual, novas estruturas familiares, entre outros.Neste ano, o Ciclo trabalha o tema “As paixões do ser: amor, ódio e ignorância”.Para lançarmos o debate, geralmente convidamos um psicanalista da Escola e um profissional cuja prática esteja articulada ao tema escolhido.O último filme projetado foi Elefante, de Gus Van Sant, e tivemos como debatedores nossa colega Cristina Duba e Sergio Xavier Ferreira, cientista político.
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Stella Jimenez
Psicanalista membro da EBP-AMP e coordenadora da atividade “Cinema e Psicanálise” na EBP-Rio.
Elefante
O intrigante título do filme já nos dá uma pista do espírito do filme, não é obvio à primeira vista, ele nos intriga, sugere um enigma, e somente uma reflexão externa aos elementos do filme nos traz um fio de elucidação: elefante, este título, alude à expressão “um elefante na sala”, que não pode deixar de ser notado? Ou podemos supor que se refere à parábola chinesa em que cinco cegos de nascença apalpam, cada um, uma parte de um elefante e dessa parte ou desse somatório de elefantices não deduzem um elefante? Também no filme, e até se pensarmos heterodoxamente em outros filmes que o suplementam, como “Tiros em Columbine”, as diversas situações não perfazem um todo compreensível.
Tentemos.
Partes do elefante:
1- uma inexpressiva cidade americana (Littleton, subúrbio de Denver, Colorado – cidade de origem, aliás, de um dos criadores de South Park, a melhor sátira, de animação, da mentalidade da América profunda), mergulhada até o pescoço nos valores americanos do sucesso, da popularidade, da liderança e, por outro lado, privada de maiores perspectivas culturais, condena à solidão e à segregação os diferentes, os esquisitos, os “loosers” que não se engajam na comunidade que os formam e que, ao mesmo tempo, os excluem. Os expulsos da ditadura de um ideal de normalidade “massacrante”.
2- o poderoso culto ao individualismo, essa flor do capitalismo, que sustenta a concepção tão americana de que todos têm direito a se defender, direito de defesa que se separa por um fio do direito ao ataque. Todos têm direito a armas, afinal, é um país “livre”, como se repete em muitos filmes de Hollywood.
3- a solidão e exclusão social dos meninos que se consolida no mergulho em fantasias megalômanas de morte e vingança, que encontram forma no fascínio pelo nazismo e ideologias que cultuam a força e a morte. Identificados ou encarnando os ideais de que estão justamente excluídos.
4- a solidão amorosa, a angústia sexual. A difícil transição da adolescência, a presença do corpo que se altera e de um corpo sexual que se impõe e para o qual tantos não encontram recursos.
5- a patologia de cada um, a solidão familiar, o silêncio. O declínio do pai que se insinua já na primeira cena, em que é o filho que precisa cuidar do pai, é o filho que ordena a família, o mesmo menino que tentará em vão alertar os que chegam à escola no momento do ataque.
Etc etc etc
Somemos todas as partes desse elefante, elas não perfazem o elefante. Há um vazio a separar todas essas causas e o que resulta, num salto, desse somatório. Silêncio e imagens de uma tormenta que se aproxima. E, por fim, precipita-se a satisfação mortífera do ato. Por mais que tenha sido um ato planejado, minuciosamente arquitetado, não impediu hesitações e foi movido por uma intensa e triste satisfação de matar. Entre a causa e o ato há um salto.
Que outras motivações obscuras, nos perguntamos? Como em todo ato suicida, não obteremos a resposta definitiva, já que seus autores terminaram o trabalho, estão mortos.
Mas, por outro lado, esse acontecimento teve um caráter epidêmico. Tanto é virótico, espalha-se, trazendo o ganho secundário da celebridade, da notoriedade, como também, como fenômeno social, tem outras determinações. Assim, gera efeitos e é ele próprio também efeito.
Mas continua elefante, à semelhança do próprio filme que, ao estilo de documentário algo caseiro, acrescenta, no entanto, elementos ficcionais, trazendo as mesmas cenas, multiplicadas em diversos ângulos e do ponto de vista de cada personagem, prolongando os poucos minutos que antecederam o massacre. Interessante observar que seus atores não são todos de fato atores, muitos utilizam seu próprio nome… Assim, mesclando documentário e ficção, somos trazidos pelo filme para muito perto de algo que não podemos compreender totalmente e nem de fato prevenir…
Em outras palavras, o filme, ao reconstituir os fatos em sua versão mais plausível, retomando os simples acontecimentos que o antecederam por diversos olhares, desdobra em cenas multifacetadas o momento único em que aconteceu o ato, mas, como em toda tragédia, não recupera o sentido total do ato. Toda essa solução cinematográfica, esses recursos dramatúrgicos, obtém êxito em nos mostrar que há então um ponto em que o sentido se esvazia, se esvai. Algo nos escapa do entendimento, algo para o qual não temos imagens nem palavras, afinal, não há o que sintetize o que foi esse acontecimento elefante. Nas cenas finais, o próprio móvel mais visível do crime, seja a solidão, o desamparo, o ressentimento, se esvai numa espécie de gozo puro e aleatório. E se algo dessa violência permanece incompreensível, isso não nos condena à impotência, principalmente porque nos interroga sobre nossa posição ao percorrer exaustivamente esse percurso, nossa posição em relação a essa violência que não se torna só exterior, não é só a violência dos outros, também está em nós, que percorremos os mesmos corredores, e cuja representação nos concerne, nos atinge e nos comove.