A provocação lançada no argumento da atividade “Raízes literárias da psicanálise” sobre o que Lou Andreas-Salomé ensinou a Freud, foi o ponto de partida para um percurso pela sua trajetória que se apresentou “incomparável”.
Com Lacan, sabemos que todas as mulheres são incomparáveis, só é possível dizê-las, contá-las, uma a uma, porque não há uma expressão que esclareça a sua satisfação dizendo que “assim se satisfazem todas as mulheres”: elas não fazem conjunto.
Contudo, tomando uma a uma, podemos falar da relação de cada uma com a sua própria satisfação e, assim, eu apresento Lou como incomparável em um ponto em que, para além do seu tempo, ela sustentou tal satisfação “sem reservas”, não só em seu discurso, mas em ato, vivendo: enlaçando-se com a filosofia, a poesia e a psicanálise.
Em seu livro Minha vida, com escritos entre 1931-1932 e 1936 (escrita acompanhada por Ernst Pfeiffer), no título “Experiência do amor”, Lou diz:
Muitos dos elementos essenciais que acabo de descrever relacionaram-se, nos meus anos mais jovens, com meu primeiro grande amor, e, por isso, talvez eu não tenha sido capaz de exprimir em palavras o meu pensamento. Também em minha vida isso ficou incompleto. Assim, relativamente às três maneiras de consumação do amor (no casamento, na maternidade e na pura união erótica) tenho mesmo que confessar não poder competir com quem, aqui ou acolá, tenha obtido bom resultado em todas elas. Mas não é isso o que importa; basta que tenhamos agarrado o que era vida e produza vida, e que, do primeiro ao último dia, tenhamos permanecido produtivamente nela, como seres vivos. (ANDREAS-SALOMÉ, 1931-1932/1985, p.28).
Parece essencial colher deste escrito que não se trata para ela de resultado, o que nos colocaria numa medida fálica da existência, mas de vida vivida, a qual diz ter se entregado de forma “alegre, solícita e sem reservas a tudo” (ANDREAS-SALOMÉ, 1931-1932/1985, p.29).
Para Lou o casamento se apresentava como obstáculo a este movimento e, ao referir-se a sua “Experiência da amizade”, tratando particularmente da relação com Paul Reé, diz: “Primeiramente tive que fazê-lo compreender tudo aquilo que minha vida amorosa ‘definitivamente fechada’ e minha necessidade completamente desenfreada de liberdade impeliam-me a realizar.” (ANDREAS-SALOMÉ, 1931-1932/1985, p.54). Sua posição também foi apresentada a Friedrich Nietzsche quando o filósofo se reuniu a eles, mas isto não teria sido suficiente para impedir as ruidosas rupturas com ambos, Reé e Nietzsche, os quais se enamoraram e desejavam o casamento.
Em outro momento, entretanto, em seu relacionamento com Rainer M. Rilke, ela afirmará a intensidade do que viveu e a fez dele, sem o formalismo do casamento assimilado a posse:
Se fui durante anos tua mulher, assim o foi porque tu foste para mim pela primeira vez o real, corpo e homem uno, indiscernível, fato indubitável da vida mesma. Palavra por palavra eu tinha podido confessar-te o que me disseste com confissão de amor: “Somente tu és real”. Foi assim que nos tornamos esposos antes de nos tornarmos amigos, e tornamo-nos amigos mais por bodas igualmente subterrâneas do que pela escolha. (ANDREAS-SALOMÉ, 1934/1985, p.97)
Quando penso nisso me vem a vontade de continuar a vida inteira nos relatando, como se só assim se chegasse a saber o que é poesia – não na profissão, mas na carne, porque justamente é esse o “milagre” da vida. (ANDREAS-SALOMÉ, 1934/1985, p.101).
Em seu escrito “Reflexões sobre o problema do amor”, ela se revela advertida da natureza de semblante do amor:
…no amor, são dois mundos estranhos que se encontram, dois contrários: dois mundos entre os quais não existe e nunca poderão existir essas pontes lançadas entre nós, nem aquilo que aparentemente nos está ligando: algo semelhante, familiar e que nos dá a sensação de caminharmos para nós mesmos e em nossos próprios domínios quando dele nos aproximamos. Não é por acaso que, às vezes, o amor e ódio se assemelham e tendem, por conseguinte, a se alternar na tempestade da paixão. (ANDREAS-SALOMÉ, 1900 apud SOUZA, 2006, p. 246)
Nessa leitura dos artigos compilados de Lou sobre o amor e o erotismo, Souza destacará que para ela “a embriaguez erótica é um dos principais componentes para a transformação do amor em espaço de criação de si”, parecendo que ambos – amor e erotismo – “se apresentam na potência que nos oferece para uma (re)escrita de nós mesmos.” (SOUZA, 2006, p. 246)
Retomando sua livre trajetória, podemos destacar alguns elementos apresentados em sua autobiografia que poderiam esclarecer a sua clara desinibição de transitar num mundo de fortes referências masculinas, como o forte afeto do pai por ela que intensamente desejou a chegada de uma filha após 5 filhos, estabelecendo entre eles uma estreita ligação afetiva e possibilitando sua desenvoltura no ambiente familiar da infância e início da adolescência.
Lou diz que cresceu percebendo a existência de uma importante relação de respeito entre seus pais e não um homem que se sobrepunha a uma mulher, além de ter se mantido próxima aos irmãos mais velhos, o que a fez experimentar o “sentimento de estar ligada por laços fraternais aos homens (…) sempre me pareceu que um irmão se escondia em cada um dos homens que encontrei.” (ANDREAS-SALOMÉ, 1931-1932/1985, p.31)
Finalmente, a despeito da contrariedade da mãe frente a sua conduta “que se chocava de forma violenta com os costumes sociais de então”, Lou afirma que ela se colocava irredutivelmente ao seu lado “frente ao mundo” (ANDREAS-SALOMÉ, 1931-1932/1985, p.39).
Prosseguindo, Lou Andreas-Salomé relata a sua entrada na psicanálise sob o título “Experiência Freud”: ela não se apresenta com qualquer autoria em relação à prática que também elegeu como sua, mas se faz grata à experiência e, no momento final de sua vida, confrontada com a perseguição nazista, aponta o “que a causa Freud exige de nós (…). Reconheçamos de imediato aquilo no que somos unos e iguais com o todo”, chamando a atenção ao que pode nos afastar do que ela chama o “acesso à fraternidade” – haveria um fator que causaria obstáculo, que seriam os “preconceitos de casta”, que, ao invés de contentar-se com um chão primitivo igual ao dos outros, prefere construir castelos no ar, para pôr-se a salvo.” (ANDREAS-SALOMÉ, 1931-1932/1985, p.114)
Havia grande franqueza e amizade entre Lou e Freud, que reconhecia nele a capacidade “para libertar-se da preocupação de ter que se defrontar com o chocante ou o repelente. (…) um racionalista que, de modo indireto, descortinou o irracional.” (ANDREAS-SALOMÉ, 1931-1932/1985, p.108)
Freud, por sua vez, reconheceu as contribuições de Lou Andreas-Salomé no que se refere à sexualidade e cita suas publicações em suas Conferências XX (1916-1917) e XXXII (1933), além de também mencioná-la em “As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal” (1917) e na nota de 1920 incluída no 2º ensaio dos “Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905).
De forma muito interessante Lou indica que a consciência experimenta o inconsciente pela via corporal: o corporal constitui nossa existência, mas a ele não podemos nos identificar devido as expressões espirituais e anímicas. Por isto, ela dirá, a psicanálise é “difamada”, pelo que disto descortina.
O termo difamada traz ressonâncias em Lacan, num momento em que na sua transmissão ele faz equivocar o dizer sobre a mulher – “on la dit-femme” – com a difamação (LACAN, 1972-1973, 1985) e parece nos apontar para a questão do que Lou pode ter “ensinado” a Freud, ao solicitar participar de sua Sociedade e das reuniões das quartas-feiras.
Neste sentido, fica indicado o que da medida da época a psicanálise faz transbordar, excede, lançando o seu olhar para o que até então permanecia encoberto, disfarçado, recalcado.
Ao tecer suas próprias considerações acerca da sexualidade e particularmente da sexualidade feminina, Lou teria se incluído entre as vozes femininas da psicanálise da época, que entre o feminismo e o feminino, levaram Freud a rever suas teses acerca do tema (FUENTES, 2012, p.91) – o que vamos encontrar em seus escritos no momento final de suas produções entre 1931 e 1933.
Em “Sobre a sexualidade feminina” (1931) e em “A feminilidade” (1933) – Conferência XXXIII, encontramos Freud apresentando uma revisão de suas teses sobre o Édipo feminino e formulações próximas as enunciadas pela própria Lou na exibição do filme que acabamos de assistir quando aponta que o masculino e o feminino se misturam em um indivíduo em proporções muito variáveis, ainda acrescentando que aquilo que define masculinidade ou feminilidade é, afinal, uma característica desconhecida que a anatomia não é capaz de identificar.
Freud fará restar a feminilidade como um enigma, referindo que é da natureza peculiar da psicanálise que ela não queira descrever o que é a mulher – isso seria uma questão sem solução –, mas investigar como uma criança predisposta a bissexualidade se torna uma mulher, como chega a ser uma mulher.
De acordo com Fuentes, em Lou Andreas-Salomé,
Freud (1914c/1981) encontrou a inspiração para escrever sobre as mulheres que contemplam narcisicamente a si mesmas, que se amam, sobretudo as belas, diz Freud, e necessitam de um homem que as amem para se satisfazerem. Para ele, é o narcisismo que as torna atrativas para o sexo oposto e faz com que o corpo feminino seja revestido com o véu da beleza que seduz e fascina o homem, ao mesmo tempo em que as protege da falta fálica. (FUENTES, 2012, p. 110)
Entre os sentidos indicados e a falta de sentido, encerro com as palavras finais de Freud sobre Lou Andreas-Salomé:
Claramente sabia onde devem ser procurados os verdadeiros valores da vida. Aqueles que foram mais íntimos tiveram a mais forte impressão da genuinidade e da harmonia de sua natureza, e puderam descobrir com espanto que todas as fraquezas femininas e talvez a maioria das fraquezas humanas lhe eram estranhas ou tinham sido por ela vencidas no decorrer de sua vida.(FREUD, 1937, p. 334)