É neste paradoxo insuperável que se apoiam a cidadania e a marginalidade, a paz e os conflitos sociais, as semelhanças e as desigualdades, o direito, a justiça e as iniquidades sociais. O universal é como o arco íris, que só pode ser visto de longe, mas é, no entanto, necessário para que se tenha uma direção.
Máxima versus Lei
Lacan nos ensinou que não existe uma passagem da máxima, sempre individual, para a lei, que se pretende sempre universal. Ou seja, entre o capricho e a lei – admitamos que o capricho pode ser uma das formas da máxima – há um abismo, em cuja travessia os dois saem mutilados: basta que alguém se recuse a obedecer a ele para que o capricho não possa transcender o particular, e isso significa que, na prática, uma lei nunca será universal. Isto, aliás, não impede o seu funcionamento, nem sequer o seu bom funcionamento, mas a sua produção e aplicação serão sempre influenciadas por fatores contingentes: a sensibilidade do juiz, a situação política com o seu necessário jogo de interesses, algum fato recente que tenha mobilizado a emoção coletiva, etc.
No mais recente Fórum de Zadig, realizado no Rio de Janeiro sob o tema Lei e Violência, o sociólogo Luiz Eduardo Soares e o juiz de direito Marcelo Semer nos trouxeram elementos fundamentais para a nossa compreensão de como uma universalidade, sempre inatingível, pode, no entanto, servir de cimento para o entendimento social.
Luiz Eduardo Soares, a um certo momento da sua fala, nos mostrou que o universal, se existisse, poderia ser representado por uma hipotética proporcionalidade absoluta entre o crime e a pena: dada tal infração à lei, aplique-se tal pena. É uma compreensão iluminista, para usar o adjetivo trazido por Marcelo Semer, segundo a qual uma máxima pode se tornar universal, e uma pena deve corresponder, quantitativamente, ao crime. E, naturalmente, o juiz tem a função de garantir essa correspondência.
Sobre as relações entre e o crime e a pena, Luiz Eduardo Soares nos dizia que “…a categoria ‘proporcionalidade’, valor cultuado pelo Direito, é enganosa, em seu uso ordinário, popular. Mais que enganosa, ela legitima as punições, em especial a privação de liberdade, como se fossem derivações naturais do próprio crime.”
Dizer que a proporcionalidade legitima as punições tem implicações importantes: tem-se antes de tudo que reconhecer o direito e a obrigação que tem o poder público de punir. Mas, sabendo que a relação entre o crime e a punição não é natural: a relação, por exemplo, entre o homicídio e a pena de trinta anos, prevista na lei brasileira, não está na natureza do crime. Entre os dois há um artifício, ou uma convenção, além do conjunto de fatores que chamei há pouco de contingentes.
É justamente a partir da ação da convenção e das contingências que Marcelo Semer nos explica a diferença – mais do que diferença, uma passagem histórica, que conduz do Juiz Liberal ao Juiz Social:
O Juiz Liberal se afirma independente do poder central e, para cumprir este mister, se arroga apolítico. Consagra a dogmática como sua fórmula gestora e não reconhece a seletividade do sistema ou as violências praticadas ao seu redor, aí incluídas as características étnicas e raciais na colheita da clientela policial – estranhas que são à realidade do direito positivo.
Por sua vez,
O Juiz Social reconhece o dogmatismo em sua tradição iluminista (…) mas não ignora a seletividade e, com ela, as violências inerentes ao sistema penal. Busca atenuá-las, reduzindo danos, com a aplicação dos princípios que percebe superiores e ainda vetores das regras (culpabilidade, proporcionalidade, lesividade, igualdade). Para além da legalidade, exige a violação do bem jurídico como limite do punível – e afasta deste âmbito as insignificâncias e adequações sociais.
Lei versus Violência
A paz social exige uma relação de exclusão entre lei e violência. Se a lei foi feita para todos, a violência deve ser mantida fora dos limites da convenção legal. Contra a violência, aplique-se a lei: esta é uma condição essencial à convivência, sem a qual a justiça e o direito não poderão prevalecer.
Mas…, e aqui chegamos ao ponto central do tema do nosso Fórum: a própria lei, ao ser aplicada, veicula com ela um poder de violência que, diferente da violência do crime, lhe é, no entanto, inerente. Não se trata simplesmente da violência que, nos países civilizados, constitui um apanágio do poder público. Trata-se antes do fato de que a lei, convenção fundada em significantes comuns àquele conjunto social preciso, não metaforiza por completo a violência, que se acha, em princípio, além dos limites da fala [2] e da lei. Resta um resíduo de algo fora da lei no cerne da lei, algo de inassimilável que levou Éric Laurent a dizer certo dia, em entrevista na Argentina, que toda lei tem um “núcleo louco”.
Por menos que pareça à primeira vista, é em torno desse núcleo louco, associado por Freud à pulsão de morte, que se pode estabelecer um diálogo profícuo entre o direito e a psicanálise.