Dirijo-me a vocês, hoje, de um ponto de vista que não é apenas pessoal. Para falar da situação política no Brasil – e do que pode ser seu retrocesso autoritário –, é necessário passar pelo que um psicanalista tem a dizer a respeito, e isso a partir de um resto. Um resto, ou seja, o que o ponto de vista do historiador ou do sociólogo não pôde recobrir, um resto que as causas econômicas, sociais e geopolíticas não bastam para anular.
Sob esse ponto de vista, gostaria de fazer ressoar a expressão “Primer Foro”, usada por Jacques Lacan em 11 de março de 1981. Foi no après-coup da dissolução de sua Escola e com o intuito de transformar em Escola a Associação Causa Freudiana que Lacan convocou o que chamou de “meu primeiro Fórum”. Convocado para os dias 28 e 29 de março de 1981, o primeiro fórum de Lacan teve como objetivo reunir os 1000 candidatos que declararam querer seguir com ele, aqueles que responderam positivamente ao apelo esboçado pelo próprio Lacan na “Carta de dissolução”, a fim de reuni-los em torno dos estatutos da Escola de seus alunos [2].
O primeiro passo de Lacan foi assegurar legalmente o nome Causa Freudiana, criando uma associação com esse nome, um mês após a “Carta de Dissolução”, em 1980, enquanto transcorria o processo de desaparecimento jurídico da EFP. Ao mesmo tempo em que transcorria o processo, ele confiou a Jacques-Alain Miller a redação dos novos estatutos, destinados a demarcar o funcionamento efetivo. Em torno desses estatutos, registrados após sua aprovação na AG dessa Associação Causa Freudiana, em novembro de 1980 com 14 membros, Lacan anunciou que a Causa Freudiana teria sua Escola. Não mais a dele, a Escola que não funda, mas cuja presidência chega a assumir, tratando-a como a Escola de seus alunos.
Ao evocar o primeiro Fórum de Lacan, pretendo enfocar os motivos políticos que envolvem um Fórum, que é por definição o lugar em que se compartilham coisas [3]. Este anúncio feito para o primeiro fórum: “(…) eu convoco para os dias 28 e 29 deste mês, meu primeiro fórum” [4]. E alguns dias depois: “(…) certamente é curioso que não se preste mais atenção ao que eu digo. Eu disse: um Fórum da Escola. Logo, a Escola é necessária” [5].
O primeiro Fórum é um Fórum da Escola, embora ainda sem membros. Os estatutos da Escola foram objeto de compartilhamento, ideias foram trocadas entre os que declararam querer seguir com Lacan. A relação entre Fórum-Escola, Fórum da Escola (“logo, a Escola é necessária”), nos mostra a diferença postulada por Jacques-Alain Miller, que propôs o movimento Zadig como uma extensão da Escola no âmbito da opinião. Foi Jacques-Alain Miller quem retomou a fórmula Fórum em 2013, quando esteve em questão a regulamentação da profissão de psicanalista. E em 2017, sob seu impulso, a ECF se engajou numa campanha eleitoral organizando inúmeros Fóruns. O Fórum, segundo Philippe La Sagna, é um intérprete ativo do laço social. A psicanálise, interpretando o laço social, busca incidir, através do recurso da fala, acolhendo diversos pontos de vista e não pretendendo a dominação.
Pode-se dizer que a situação atual do Brasil decorre de uma viragem autoritária? A palavra “viragem” implica uma reviravolta. Ora, na sociedade brasileira o autoritarismo tem raízes profundas; ele não contestaria o autoritarismo do governo, mas antes a expressão “viragem autoritária”. A história poderá nos mostrar que não houve uma reviravolta autoritária porque a sociedade brasileira sempre teve profundas raízes autoritárias; trata-se de mostrar o quanto convém distinguir o autoritarismo brasileiro do autoritarismo no Brasil, este resultante de um ponto de vista sobretudo estatístico, visando a uma simples constatação dos fenômenos sociais. O aumento de crimes está ligado ao fato de que se dá maior importância a isto, sem evocar as causas.
De que história se trata? Não da história que o governo autoritário atual tenta forjar, aquela que ele tenta recriar, mas sobretudo a que mostra a historiadora Lilia Moritz Schwarcz; uma história que produz uma narrativa, sem a pretensão de encarnar “a” verdade, uma verdade única. Essa autora relata a história do ativismo dos negros nos anos 70, sem invocar a menor passividade ou vitimização, mas destacando uma perspectiva de rebelião, de insurreição. Ela evoca inclusive tentativas de aborto pela parte dos escravos, quando mulheres não queriam colocar no mundo um ser escravizado, tentando deste modo extraírem-se de um discurso de vitimização. Essa historiadora acaba de publicar um livro sobre esse tema, intitulado Sobre o autoritarismo brasileiro [6].
Recriar a história a partir da ocultação daquilo que perturba, como a escravidão – lembremos que o Brasil recolheu quase a metade dos africanos que chegaram às Américas e Caribe. Precisemos: 4 milhões e oitocentos mil – a fim de preservar o “mito da democracia racial”, ou da naturalização das desigualdades. A ambição de Moritz Schwarcz é reconhecer as raízes do autoritarismo no Brasil na própria história do mito da democracia racial, entre outras, e com o apoio de outros elementos, tais como uma boa base estatística, mostrando uma história anterior, que contradiz a própria possibilidade de espantar-se. Deste modo, ela entende produzir uma discussão crítica do passado [7]. É nesse contexto que ela expõe sua leitura do impeachment da presidente Dilma Rousseff como sendo o momento decisivo da reviravolta que permitiu que tudo o que provém do autoritarismo pudesse exprimir-se sem filtros, a tal ponto que a própria noção de democracia, que é um conceito sólido, se tornou algo insuficiente, reduzindo-se ao fato de se ter vencido uma eleição presidencial.
Retomo aqui uma afirmação que desenvolvi recentemente em Bruxelas, a saber: o coming out do homem reacionário brasileiro. Tratar-se-ia de mostrar que o preconceito brasileiro, em conflito com aquelas e aqueles que são chamados de “minorias”, não tem nada de novo. O passado escravagista deixa traços inexoráveis. Essa inclinação prevaleceu em uma estrutura menos patriarcal e menos reacionária. A respeito de outra prática reacionária, a da psicanálise, Jacques-Alain Miller destacou que ela caminha de mãos dadas com a exaltação dos símbolos da tradição [8]. Ele evocava assim alianças inacreditáveis, por exemplo, entre leituras da Bíblia e d’A interpretação dos sonhos. Essa afirmação é bem anterior à chegada ao poder de Jair Bolsonaro e se trata hoje de situá-la em relação ao a posteriori dos seis primeiros meses de governo e de mostrar em que a tese do homem reacionário brasileiro (e de sua esposa, que se adapta tão bem ao lar, que faz dele seu bem moral mais elevado, sem esquecer o macho “acima de tudo”!) atesta um governo peculiar, próprio aos governantes populistas.
A base de nossa história, com exceção da interpretação equívoca do clássico livro Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que é sobretudo um crítico da ideia de homem cordial, constitui-se de uma enorme desproporção entre homens e mulheres, donde resulta uma sociedade misógina, excessivamente machista.
A essa onda reacionária e conservadora acrescenta-se o aumento dos grupos evangélicos, principalmente os neopentecostais, nas esferas de influência e de poder. Vemos subir à cena político-midiática o ator político-religioso midiático, cuja participação na vida pública é cada vez mais importante. O Brasil, entre 2013 e 2017, entrou em um período de colapso após as “jornadas de junho de 2013” – termo adotado pela academia brasileira para referir-se aos surpreendentes acontecimentos do ano –, quando milhares de jovens saíram às ruas de 338 cidades do país. Esse movimento orgânico e sem hierarquia começou como protesto contra o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo. Foram as manifestações mais fortes desde a redemocratização. Segundo pesquisas acadêmicas conduzidas por jornalistas, a insatisfação popular se tornou uma maré de frustrações generalizadas; os discursos de ódio saíram do armário e a emergência de uma direita orgulhosa de si mesma e militante do anti-intelectualismo emergiu como mel na sopa de um projeto político-religioso que havia sido gerado décadas antes, floresceu e assim deu frutos. A autora dessa pesquisa, Rafaela Lima Marques, jornalista proveniente da região norte do país e de família católica, interessou-se pela teologia da Libertação, movimento clerical que propõe uma interpretação das escrituras sagradas pelo catolicismo a partir de uma perspectiva marxista. Nessa filiação hermenêutica, Jesus Cristo aparece como alguém para quem a liberdade dos povos e a determinação humana devem vir da construção da justiça social.
Nessa época, eu preparava uma crônica para LQ intitulada “Séries brasileiras” e, a respeito das manifestações, uma questão surgiu: “o despertar do gigante brasileiro”? Várias metáforas foram evocadas (LQ-398) a respeito das manifestações que aconteceram em São Paulo (SP) em junho de 2013. E a do gigante retoma os termos do hino nacional brasileiro, em que o país é “gigante pela própria natureza” e está “deitado eternamente em berço esplêndido”. A questão se colocava para mim nos seguintes termos: O gigante acordou? Essas manifestações seriam o sinal de uma transformação social no Brasil?
Em 2014, a eleição presidencial marca para sempre a imagem de um país despedaçado por intensas clivagens das quais o imaginário evangélico participa para reforçar seu poder político. E no momento do impeachment, o elemento religioso teve uma influência central no desenvolvimento dos acontecimentos.
O processo foi conduzido pelo presidente da câmara dos deputados que frequentava a Assembleia de Deus e membro do grupo evangélico dessa câmara. Em 2016, foi a vez da cidade do Rio de Janeiro manifestar a presença dessa força ao eleger um pastor da igreja Universal do Reino de Deus em detrimento do candidato do espectro da esquerda.
Fundada no Rio em 1977, a IURD sintetiza o neopentecostalismo, o ramo mais amplo e radiante da igreja evangélica. Atualmente, ela possui templos em 70 países e propaga um plano de poder [9]. Esse plano tem a pretensão de uma transformação radical do mundo por meio da eleição de dirigentes capazes de estabelecer uma hegemonia cultural e deste modo materializar o projeto de nação construído por Deus para os hebreus.
É aí que uma questão retorna e exerceu um papel importante no resultado das últimas eleições: os líderes religiosos evangélicos acreditam que a mudança das embaixadas responde a preceitos bíblicos. Se Bolsonaro transfere a embaixada em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém, isto será um sinal do retorno do Messias, com a concentração dos judeus em Jerusalém, razão do apoio desses grupos à política atual de Bolsonaro em relação ao Oriente Médio, o que se acrescenta à demanda dos ultra ortodoxos de Israel. Deste modo, a religião é um fator essencial nesse retorno do conservadorismo brasileiro.
O fortalecimento do vínculo do Brasil com Israel e, consequentemente, o fortalecimento de Israel, é uma pré-condição para a realização da profecia bíblica do retorno do Cristo ao mundo dos mortais (Cláudia Trevisan, no Jornal o Estado de São Paulo). Os evangélicos representam 22% dos brasileiros, e eles votaram em peso em Bolsonaro, assim como a comunidade judaica de São Paulo. Por causa da promessa de mudança da embaixada brasileira, houve o apoio de duas fortes comunidades religiosas.
A popularidade do presidente, no entanto, já caiu consideravelmente. Desde 1990, nunca um chefe de Estado brasileiro havia visto sua aprovação cair tão rápido após os três primeiros meses de exercício de seu primeiro mandato. Camille Magnard, no noticiário internacional France Culture, comentava que a universidade brasileira constitui a principal contestação em massa a Jair Bolsonaro. A reportagem estima que 1,5 milhão de pessoas se manifestaram pelo país contra os ataques dirigidos por ele às universidades e à pesquisa.
A contestação que se mobilizou é a mais forte que se elevou contra Jair Bolsonaro desde sua chegada ao poder em primeiro de janeiro e, no entanto, ele a trata com desprezo. Nem falemos do carreirismo do ex-juiz Moro [10], a anos-luz de uma dita política eficaz para a segurança pública no Brasil.