I
Nas mesas anteriores desse evento, tive a sensação, e creio que vocês também, de termos chegado perto, bem perto, de alguns dos pontos cruciais desse momento tão duro de nosso país. Descobrimos, não sem alguma estranheza e certo assombro, como a lei nos escapa, tanto quanto a memória e a verdade. Estamos vivendo as consequências disso. Acabamos de ouvir um pouco da voz de quem sofre mais diretamente, na pele, essas consequências. Vimos retratos de uma população que vive sob o constante risco de invisibilidade ou extermínio. Cabe, porém, perguntar: Onde, em nós, ouvimos essas vozes? Vindas de um exterior distante? Ou nos tocam no coração da intimidade?
Fato é que elas nunca são tão silenciadas quanto os que levantam muros e condomínios gostariam de acreditar. Por outro lado, ao ouvi-las nas histórias de Djefferson e Miriam [2], não há como dizer “sei o que vocês estão passando”. Seria quase igualmente violento. Gostaria, então, apenas de fazê-las reverberar um pouco mais, para propor que aqui ressoaram ao modo do que Lacan chamou extimidade – conceito ao qual J. A. Miller dedicou um ano de seu Curso da Orientação Lacaniana [3]. Para isso, assim como eles, partirei de um pequeno testemunho, a partir de minha experiência no trabalho no Digaí-Maré a que Miriam se referiu [4].
II
Não há extimidade no registro do que se nomeia habitualmente diferença, como quando se diz que é preciso “aceitar a diferença”. Essa diferença é sempre relativa, entre preto e branco, por exemplo. Nesse regime, os que se colocam de um lado podem recusar, odiar, visar o extermínio do outro. Não é o que tantos vêm fazendo com nossos jovens negros? O terrível é que eles podem, de fato, ser eliminados. A diferença não, pois vive da polaridade significante que funda nossa fala. Afinal, como dizer do dia sem a noite? Assim entendo porque Luiz Eduardo Soares fala em “prisão sintática” para assinalar a tentativa de aprisionamento das diferenças da língua em uma polarização rígida e, muitas vezes, sanguinária em nossos dias [5].
A extimidade que o inconsciente nos apresenta é outra coisa, pois se funda na experiência fundamental para Freud de estranheza, em que nada é “pão-pão, queijo-queijo” ou “preto no branco”, mas sempre infamiliar [6]. Algo vivido retorna de fora, como um excluído interno. Essa inquietante estranheza é sua marca.
Lembro-me de um episódio: uma das participantes do Digaí descobre que boa parte dos moradores da rua em que trabalhávamos na Maré- muitos dos quais atendíamos – vinha da remoção de uma favela da zona sul, que se localizava exatamente onde ela morava desde a infância. Havia se mudado, pequena, para um prédio construído quase imediatamente após a saída dos antigos moradores. Foi criada, então, na rua em que eles haviam habitado desde a chegada ao Rio, vindos do Nordeste em sua maioria, até serem “removidos” e, agora, trabalhava na rua em que moravam.
Não creio que seja um exemplo muito específico do Unheimlich freudiano, mais diretamente referido ao retorno do recalcado de uma história pessoal. Essa situação mostra, porém, que o estranho não é o diferente. Muito difícil tomar o que ocorria em nossa rua, antes de ali morarmos, como algo inteiramente estrangeiro a nós, do qual seriamos simplesmente diferentes. Ainda mais, como no caso dessa psicanalista, ao ouvir histórias de quem ali viveu por décadas e foi de lá arrancado. Entendo esse episódio como uma experiência capaz de modificar radicalmente a cidade de alguém, o modo de habitá-la. Basta que a estranheza se faça presente para que seja impossível contentar-se com a polaridade amigo-inimigo, cidadão-favelado ou ainda morador- bandido.
III
Quero ainda situar o modo freudiano de lidar com essa estranheza com uma passagem de minha análise, do começo do trabalho na Maré.
Levava meus filhos, como costumava fazer, a um evento na casa que alugávamos na favela. Para chegar lá, era preciso, às vezes, nos apresentar aos que controlavam o acesso. Em um desses dias, fomos parados por dois meninos carregando fuzis que nos perguntaram aonde íamos. Nada muito inesperado e que não tenha se repetido muitas vezes posteriormente, mas a sensação de estranheza não me deixou. Um tempo depois, contei a cena em análise. O analista apenas comentou: “você levou seus filhos para lá, para correr esse risco”, mas ao ouvi-lo, ficou evidente o quanto havia de repetição na cena. Desde há muito, já percebera que eu sempre tendera a achar a vida tão mais real e autêntica quanto mais próxima do perigo. Reencenava então, com filhos, mais um encontro com o perigo, provocado em parte por meu desejo inconsciente de encontrá-lo.
Sob a familiaridade consciente de minha atitude política de reduzir as diferenças e de fazer meus filhos conhecerem outras crianças em outro bairro, expunha-as a um risco, provavelmente um pouco além do necessário, pelo gozo do perigo que levava comigo. O real está em todo lugar, na Suíça ou na Maré, mas fuzis na mão de meninos justificam bem mais cuidado do que eu tinha.
Quando alguém se depara com a estranheza de sua repetição, o gozo que a alimenta pode se deslocar. Foi o que a interpretação, sob transferência, realizou. Ela contou com a presteza do analista, mas também com o material inconsciente em torno da violência em minha vida, que me levara, nem tanto, como tantos a iludir-me com polaridades e muros, mas a borrar perigos e fronteiras bem reais. Meus filhos agradecem.
IV
Esses dois episódios parecem mostrar como a estranheza pode mudar o modo como vivemos nossa cidade. Basta levá-la a sério, ou seja, não querer esvaziar o tanto de indeterminação que ela encarna, definir se o que a causa é interno ou externo, “do bem” ou “do mal”. É suportando-a que podemos, no estranho, encontrar novidades que definirão possibilidades e impossibilidades de laço a serem construídas e não pré-definidas. Isso vale não apenas para os que fazem análise, mas para os que lidam com a história em suas leituras distorcidas, para os que constroem suas moradas no chão que dispõem seja com for, para os que recusam eufemismos palatáveis (como o de chamar as violências explícitas de nosso presidente de “declarações polêmicas”), enfim, para os que não preferem uma verdade redondinha, mas se dão a cargo as verdades que só se dizem em perturbação e insônia.
Se há um lugar onde a extimidade parece menos presente é na vida das redes, ditas sociais. De fato, cada post lacrador parece apagar a estranheza ao preço de torná-la verdade indiscutível. No mesmo sentido, cada fake news parece apenas dizer a verdade da paranoia da vez, igualmente indiscutível. A paranoia transforma a perturbação indefinida que nos causa o gozo do Outro, alteridade irredutível, em um gozo de um outro, agora conhecido, seja temível ou matável. Vários são os que indicam como as redes a favorecem com seu binarismo emocional de base [7].
As redes, porém, não são apenas isso. Tenho tido experiências de extimidade graças a elas e gostaria de concluir falando da que mais me afetou. Recentemente, ao fazer parte de um grupo de whatsapp relacionado às redes e cuidados necessários àqueles que moram ou trabalham em uma das áreas da cidade mais expostas à violência do Estado, passei a experimentar, no miúdo do quotidiano, a extrema violência de uma lei que desconhece o valor da vida para agigantar seu helicóptero de atiradores ou suas operações brutais no solo. Entremeadas às mensagens de orientação sobre tiroteios ou bloqueios, em que seus remetentes certificam-se se estão vivos e pedem cuidado aos que, a cada vez, estão expostos no território, surgem, no entanto, convites para mobilizações políticas e artísticas, saraus, slams, fazendo palpitar, em meio aos textos de medo e cuidado, uma vida e uma potência que chegam a ser desconcertantes.
Estão aqui, no meu bolso. Entre as mensagens dos que recebo em análise, dos familiares e amigos, estão agora as mensagens destes desconhecidos. Não posso dizer que são elementos de minha vida, pois não vivo diretamente (pelo menos até o momento) os acontecimentos a que se referem, mas agora eles, de algum modo, fazem parte dela. Podemos contar, cada um dos presentes nessa sala, até mesmo, um por um, tudo o que carregamos nos bolsos e bolsas, mas não tudo o que dizem e sentimos em nossos celulares, por exemplo. Essas coisas sem localização específica, ou de localização indefinidas fazem parte de nós, mesmo não enumeradas e, de certo modo, contam mais do que aquelas coisas contadas, como felizmente nos demonstrou o The Intercept.
Se pudermos estar à altura da responsabilização que a análise engendra em quem, nela, vive sua própria estranheza, nós, que agora fazemos parte desse grupo dos que precisam estar articulados em torno dos cuidados necessários para quem mora ou trabalha neste território, não ficaremos apenas lendo, chocados, deprimidos ou inertes, como tendemos, hoje, a ficarmos nesse país. A riqueza alerta da vida dessas mensagens nos exige tomar parte de seus engenhos de sobrevivência.