ZADIG, acrônimo de Zero Abjection Democratic International Group, foi a aposta de Miller para dar início à politica do Campo Freudiano ano zero. Esta intervenção com efeito interpretativo nas Escolas da AMP recebeu por aqui o nome Movida Zadig – Brasil Doces & Bárbaros, grupo propulsor para elaborar e executar as atividades Zadig entre nós. Realizou, ao longo de 2017, dois Fóruns, um sobre a corrupção e outro sobre o racismo, além de uma conversação em 2018. Finalmente, no dia 3 de agosto de 2019, um terceiro Fórum foi proposto, desta vez sobre a violência e a lei, na cidade do Rio de Janeiro.
Este número especial do Correio Express se dedica a retomar textos e comentários que foram trabalhados nessa ocasião, buscando através deste veículo de publicação articular a Escola de psicanálise e o espaço público, local privilegiado para o efeito Zadig acontecer. O que isto quer dizer? Uma Escola de psicanálise com suas instâncias e membros funciona a partir da perspectiva da duração, mesmo que se atenha ao princípio da permutação dos lugares como fator orientador dos trabalhos de Escola. Já a Movida Zadig acontece de tempos em tempos em seus Fóruns onde se articulam um discurso, um local e um tema, visando a torção proposta por J.-A. Miller de levar a psicanálise ao campo da política, “promovendo através de suas ações o exercício de leitura e de interpretação a que o momento nos convoca, por meio da mobilização e do diálogo com a opinião pública”.[1]
O foco principal está na abjeção zero. Para ressaltar este ponto – degradação zero da democracia – a AMP deu início a um movimento sustentado em três eixos, Campo freudiano ano zero, Movida Zadig e o Aggiornamento Democrático.
No âmbito das Escolas, Miller localiza um sintoma importante: o de “obstruir o avanço da psicanálise”, avanço no sentido de sustentar a Escola como base de operação, isto é, que a um só tempo poderia reconquistar o campo freudiano e triunfar sobre os impasses da civilização que ameaçam a própria existência da psicanálise, o que está enunciado no Ato de Fundação [2] por Lacan e reproduzido por Miller em seu curso Ponto de Basta [3].
É também nesse curso que ele desenvolve suas razões para propor Zadig como uma saída a este impasse – obstruir o avanço da psicanálise – na medida em que a política poderia se imiscuir no interior das Escolas produzindo o efeito de uma “promoção de um clericato fácil de caricaturar” [4]. Retira a inspiração do que ele mesmo sugere ser o “passe da Escola-sujeito”, isto é, o posicionamento da ECF enquanto instituição, através de suas instâncias, contra a candidatura de Le Pen nas eleições francesas últimas.
A inspiração não valida a imitação, o que confundiu um pouco alguns colegas brasileiros que pediam soluções às instâncias frente ao avanço da direita no Brasil no momento das eleições presidenciais de 2018. Retomo aqui um esclarecimento apresentado por Lucíola Freitas de Macedo, então presidente do Conselho da EBP:
… havia uma forte pressão por parte de numerosos membros da EBP de que a Escola aderisse aos mais variados manifestos que proliferavam nas redes sociais, durante o período pré-eleitoral. Isto levou a alguns membros de Escola a se precipitarem, lançando nas redes seus manifestos, não em nome próprio, como era de se esperar, mas fazendo uso do nome da Escola, à revelia das suas instâncias. A criação de um lugar êxtimo a partir do qual dar um tratamento às paixões do campo político não teria sido possível, sem Zadig [5].
A relação Zadig/Escola se dá pela via de mão dupla onde a Escola apoia os Fóruns visando exatamente deslocar o debate político para o espaço público, já que, se ocorresse no interior da EBP, poderia reforçar o impasse e impedir o exercício da democracia. Quanto ao retorno, isto é, o efeito Zadig na EBP, aquele de dar um “tratamento às paixões do campo politico”, tem tido seus efeitos, principalmente para orientar as instâncias frequentemente solicitadas a se posicionar, tendo em vista que estamos em face a um enorme problema – “um empecilho à implantação do Estado Democrático de Direito em nosso país com a vitória do candidato Jair Bolsonaro, com declarações e atos segregativos e violentos”, como descrito na apresentação de Jésus Santiago na abertura do Fórum [6].
Embora Zadig não tenha como objetivo responder às urgências, como esclarece Jésus em uma correspondência com o Conselho da EBP, “temos tomado o devido cuidado e prudência para que a decisão relativa a cada atividade de Zadig seja objeto de um necessário cálculo, pois o que se visa, nelas, são as chances de procedermos a interpretação dos diversos discursos que buscam tratar os sintomas peculiares das formações sócio-culturais do Brasil, como foi o caso da ‘corrupção’, do ‘racismo’ e, agora, da ‘lei/violência'” [7]. Urge que a psicanálise se posicione, não sem prudência, frente ao que a realidade nacional exige; enquanto escrevo este editorial que contextualiza a proposta de discutir em Zadig “A violência e a lei”, na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil, o drama ambiental, o enorme desastre da Amazônia, toma conta dos noticiários nacionais e internacionais.
Antes mesmo de tirarmos as devidas consequências do último Fórum, já estamos diante do horror da devastação provocado por uma política de violência que prega o espírito de destruição, fazendo com que a leitura deste número especial da Correio Express assuma novo significado: deixar sedimentar o amplo debate que lá foi desenvolvido com vistas a elaborar meios para acelerar o projeto de um outro Fórum Zadig.