Gostaria de retomar, nessa publicação, um dos pontos que tive a oportunidade de apresentar no debate que se seguiu a segunda mesa do Fórum “La Movida Zadig Brasil, Lei e violência”. Tal mesa, intitulada Tiranias Contemporâneas: de onde vêm?, composta Tatiana Roque, por Dulce Pandolfi, por mim e por Iordan Gurgel, se encerrou com um debate do qual participei. Ressalto que não se trata de uma transcrição de minha intervenção ali, mas do desenvolvimento de um tema que então pude apenas indicar.
O título de tal mesa, por si só, nos convoca a reflexões sobre questões que nos concernem, enquanto psicanalistas, diretamente. Menos no sentido de tentar-se produzir algo como uma psicopatologia individual resultante de regimes arbitrários e de extrema direita, e mais na direção de que parece haver aí, na pergunta que animou a mesa, algo sobre o qual temos o que dizer.
Sabemos que o declínio do Nome-do-Pai, esse tema tão caro a nós – e para percorrer a questão de forma bastante sumária – será tributário do processo de matematização e quantificação do mundo instaurado pela difusão e expansão no mundo do discurso da ciência, já no início do século XVI. A célebre frase de Galileu Galilei: “A natureza está escrita em caracteres matemáticos” pode ser tomada então como um marco. No entanto, como indicará Jacques-Alain Miller [1], a partir da Revolução Industrial, tem-se uma aceleração de tal processo uma vez que sua articulação ao discurso do capitalista se consuma de forma irreversível. A partir daí, e segundo inúmeros teóricos [2], ao término da Segunda Grande Guerra Mundial, um período ainda mais frenético de aceleração temporal se iniciará, no que tem sido chamado de Grande Aceleração. Tal período marcará também o enorme desenvolvimento do que se passou a chamar cibernética, tendo nas redes sócias, como as conhecemos hoje, seus desdobramentos extremos. Será a partir de tais indicações iniciais que creio podermos abordar o que nos instiga e convida ao diálogo nessa mesa.
Em sua intervenção no Fórum Europeu Zadig, na Bélgica, em dezembro de 2018, Eric Laurent [3] propõe que se distinga a posição do líder populista na primeira metade do século passado, onde podemos localizar as elaborações de Freud em “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, do populismo e seus líderes atuais. Citando o cientista político R. Liogier, Laurent indicará que, se na primeira metade do século passado seus líderes se sustentavam em nítidos argumentos marxistas ou racistas, quer dizer, num corpo doutrinal e ideológico articulado, apresentando a partir daí ideais dos quais ele seria o porta voz, os líderes populistas de hoje elegem, com uma certa liquidez, objetos variados de seu ódio. O inimigo de um deles pode ser o muçulmano, de outro, as populações tradicionais ou indígenas, como vemos no Brasil de hoje. O que não os tornariam menos perigosos, uma vez que constituem verdadeiros Bancos Centrais de Ódio, numa outra citação feita então por Laurent. Tanto quanto – e aqui um ponto crucial para nós – eles agregam, aglomeram. Quer dizer, constituem massas, e situam-se portanto na posição de líderes.
Mas, justamente não pela via de ideais, estabelecidos a partir de uma operação de recalcamento mais ou menos falha, ainda que apenas para velar o horror que tentaram encobrir, como na primeira metade do século passado. As redes sociais cumprirão, parece, um papel importante aqui, na disseminação das chamadas fake news e no que elas parecem comportar de disseminação, sem nenhum tipo de coerção (a barra do pudor, por exemplo) de um gozo bruto [4] não formatado pelo sintoma.
Aqui pode ser importante, no movimento que Jacques-Alain Miller indica na lição de 10 de abril de 2011, de seu curso inédito “O ser e o UM”, o que, ao tratar de elaborações tardias de Lacan em torno da pérèversion, chamará de sintomatização das categorias lacanianas [5]. Tal movimento consistirá em adequar elaborações e categorias iniciais do ensino de Lacan (como o Nome-do-Pai) a exigências e questões tardias de seu ensino, e enfrentadas por Lacan num percurso que aprendemos a distinguir ao longo dos cursos de Jacques-Alain Miller. Elas serão, parece-me, de grande atualidade para nós, e dirão respeito, sempre, a exigências de satisfação da pulsão inscritas nas categorias iniciais de seu ensino, naquele período que chamamos de clássico. E nem sempre da pulsão de vida, como parece tratar-se na questão em jogo.
Quero dizer: será que a categoria de pérèversion, esse derivado do Nome-do-Pai, mas sintomatizado enquanto abrigando nela a própria satisfação pulsional do pai, não poderia nos ser útil para avançarmos na discussão que nos interessa, a saber, a pergunta em torno da qual se articulou essa mesa?
Lançarmos mão da categoria de pérèversion, por certo alargando um pouco suas possibilidades, talvez nos permita situar algo de identificações a líderes populistas da atualidade que não se faça apenas pela via do significante e do ideal. Pois o que se vê hoje no Brasil são declarações obscenas de um gozo que se apresenta como… exemplar! E como exemplo presentado é tomado por parte não desprezível de seus eleitores! Como também podemos nos perguntar se tentar pensá-las apenas como retorno do recalcado seria suficiente. Frases proferidas por um governador de Estado, como: “atirar na cabecinha” e outras no mesmo tom, permitem que nos perguntemos se o cotejamento com eventos dos anos 1930/40 do século passado não nos obrigariam a pensar em alguma forma de enfrentar – e aqui os Fóruns Zadig tem seu lugar – essa “saída repentina dos ratos do ódio” [6].