No Fórum, realizado no dia 3 de agosto de 2019, em minha fala, dirigida ao auditório formado, sobretudo, por psicanalistas, expus dois argumentos que já apresentara em meu livro “Justiça, pensando alto sobre violência, crime e castigo” (Nova Fronteira, 2011): a prisão é também sintática e a categoria “proporcionalidade”, valor cultuado pelo Direito, é enganosa, em seu uso ordinário, popular. Mais que enganosa, ela legitima as punições, em especial a privação de liberdade, como se fossem derivações naturais do próprio crime. A problemática é, no fundo, uma só, porque diz respeito ao cerceamento da liberdade do sujeito, em níveis distintos: em um caso, limitando suas possibilidades de ser, no outro, condicionando sua possibilidade de estar. Em ambos os casos, o tema é a responsabilidade (e a culpa), ou melhor, é a responsabilização (e a culpabilização). Enquanto a psicanálise, sem negar a responsabilidade, abre as possibilidades de ser (e estar) e exorciza a culpa, a Justiça criminal opera com a distribuição restritiva de possibilidades de ser e estar, bloqueando a mudança e a experiência, congelando a culpa e, de novo, reificando a subjetivação.
Resta explicar onde está a psicanálise, nas duas reflexões. Mesmo não nomeada, ela está na liberdade do autor da reflexão, está na própria reflexão. Somente do ponto de vista da liberdade é viável identificar a prisão sintática e a desproporcionalidade irredutível do ato – bárbaro, portanto – de punir. Refiro-me à liberdade do sujeito desprendido da corrente e singular, desproporcional, excessivo – não no sentido da Hybris, mas, ao contrário, no sentido da consciência de que qualquer classificação deixa um resto, o que exige humildade na pretensão de conhecer e de se autoconhecer, o que impõe o reconhecimento da própria finitude.
Cito, a seguir, o livro referido, com pequenas atualizações.
O sujeito acorrentado a seu crime
Há cerca de trinta anos, coordenei uma pesquisa sobre a experiência do cárcere, a partir de histórias de vida dos presos. O resultado mudou meu modo de pensar sobre a punição. Minha perspectiva já era crítica, mas por outros motivos. Meus argumentos focalizavam outros aspectos. Curiosamente, foi por intermédio da reflexão sobre encarceramento provocada pelas entrevistas que mudei a forma de encarar a liberdade, o poder e a função das instituições.
Abreviando em poucas palavras uma longa história: aprendi que o cárcere é, acima de tudo, uma prisão sintática, que acorrenta um sujeito a um verbo (um ato, um predicado), durante muitos anos – em alguns casos para sempre, porque os efeitos ultrapassam os muros da penitenciária e o tempo da sentença. Exemplo: João matou uma pessoa. Se ele cumpre uma pena privativa de liberdade por assassinato, receberá, na instituição prisional, a identidade de assassino. João será “o assassino”. Afinal, só está lá por conta desse ato e será esse ato que o acompanhará, transformado em adjetivo, qualificando aquilo que, no sistema penitenciário, faz de João, João. Ou seja, do ponto de vista da instituição que o recebe para cumprir a pena e o vigia, dia e noite, João é “o que matou”.
A descrição exclusiva de João como aquele que matou está nas grades, na disciplina, nas mensagens que o cenário ecoa, no tratamento que os funcionários lhe dispensam, no afastamento da sociedade e das esferas da vida em que João poderia ser algo mais ou algo menos que “assassino”. Tudo, na prisão, recorda o ato criminoso. Todas as práticas, no cárcere, remetem João de volta para o dia, a hora, o local do crime. A prisão é a memória constante do mal. O controle sobre o uso do espaço e do tempo apontam, em coro, para o João sujeito do verbo matar. Ele matou. O verbo está no passado. Mas a pena é presente e arrasta consigo, futuro adentro, o ato pretérito.
É verdade que haver matado constitui mais do que um simples ato entre outros. Corresponde à perda irreversível de uma vida. É um ato abominável e irreparável. Um ato monstruoso. Mesmo assim, os atos anteriores e posteriores de João podem, eventualmente, por hipótese, merecer adjetivos positivos. João não era, necessariamente, um assassino antes de matar, um assassino em potência, aguardando o instante de liberar o monstro que trazia em si.
Dizer isso é muito perigoso. Se não há uma característica natural comum a todos os assassinos, que os pressionam em direção ao pior dos crimes, qualquer um poderia tornar-se assassino. Ninguém está livre de agir como João e o passado limpo não é garantia absoluta de um futuro pacífico. Qualquer um de nós pode cometer um ato bárbaro. O monstro pode estar adormecido em um lado obscuro nosso, que tememos, por intuí-lo. Ou talvez não haja lado monstruoso algum; apenas a incerteza sobre o a vida, o futuro, o que somos e o que faremos daquilo que somos.
Ouvindo João contar sua história, percebi que seria perfeitamente possível que ele, na ocasião da entrevista, estivesse tão distante daquele “eu” que matou, quanto eu e você. Provavelmente, outros estariam mais próximos daquele “eu” disposto a matar. João, quando deu a entrevista, não se reconhecia no sujeito que assassinou uma pessoa. Entretanto, a prisão o acorrentava àquele ato, àquele momento, como se ele permanecesse identificado com a posição moral e psicológica do sujeito que assumiu a atitude criminosa. João era o criminoso. Cumprir a sentença o fazia ser aquilo e nada mais. O objeto da sentença é apenas objeto da sentença até que ela se esgote.
Mas a sociedade, na maioria dos casos, preconceituosa com quem sai da prisão, não o fará esquecer e não se esquecerá de que João “é” criminoso, empurrando-o de volta para a prisão. Observe-se que a sentença/frase, “João é criminoso”, está no presente, ainda que o ato esteja num passado remoto e que a sentença/pena já tenha sido cumprida. O tempo não passa na linguagem do preconceito contra quem está e esteve preso.
A prisão sintática (um sujeito acorrentado a um predicado) é eterna, justamente porque suprime o tempo, transformando o ato em expressão do ser, convertendo a ação em um estado permanente, fazendo do crime um retrato verdadeiro, essencial e definitivo da natureza mesma do João. Mesmo que ele mude, a sentença e a prisão o mantêm conectado ao mesmo canal, na mesma sintonia do ato criminoso.
(…)
Olho por olho: o mito das penas proporcionais aos crimes
“Olho por olho; dente por dente”. Quem nunca ouviu essa fórmula, em geral proferida em tom de ameaça? Ela costuma ser aplicada em um sentido negativo, aludindo a uma atitude vingativa de quem prefere fazer justiça pelas próprias mãos, impondo a quem cometeu um ato violento o mesmo sofrimento infligido à vítima.
Na realidade, a frase pode dar lugar a uma interpretação benigna: quando, nos primórdios da história, foi pronunciada pela primeira vez, provavelmente tinha um caráter positivo, civilizador, redutor da violência. Afinal, um olho por um olho e um dente por um dente substituem uma vida por um olho ou a vida de toda a família por um dente, ou a vida de toda a comunidade por um olho e um dente. Em outras palavras, olho por olho significa a imposição de limite à reação. Em vez de explodir de ódio e devastar toda a cidade do inimigo, matando indiscriminadamente toda a população, a equação propõe à vítima da agressão um comportamento moderado, cujo grau de violência seja calibrado pela qualidade e intensidade do ato original.
A fórmula tem a sua sabedoria ao subordinar a vingança ao limite estabelecido por um cálculo. Graças a ela, a justiça de uma reação poderia ser medida. A frase “olho por olho, dente por dente” estipula a equivalência como princípio. Não proíbe a reação, mas a domestica e educa. E cria um método para medir o mal cometido: a extensão de seus efeitos destrutivos. Se um ato provoca a perda de um dente, a reação razoável seria a perda de um dente por parte do agressor. Um dente vale um dente. Fácil entender. As duas unidades trocadas são dentes, isto é, são iguais. Ou melhor, são perdas de dentes, quer dizer, perdas iguais, de mesma importância (ou quase, porque os dentes podem ser diferentes e ocupar posições distintas na boca, cumprindo funções diversas, o que torna alguns mais valiosos do que outros).
Mas o que deve ser destacado nesse intercâmbio de socos, agressões, pontapés ou pauladas – seja lá qual for a técnica de extração de dentes adotada –, é que ambas as partes concordam em estipular um princípio para reger suas trocas (de bordoadas, perdas e dentes). Assim, justifica-se a reação da vítima ou de quem a represente, desde que essa reação produza no agressor não mais do que o prejuízo equivalente àquele sofrido.
Limita-se, assim, a vingança, mas não se a elimina, nem se transfere para o Estado a responsabilidade de punir. A dinâmica continua sendo a da violência recíproca. Claro que a limitação da equivalência não funciona quando entregue aos indivíduos e suas paixões. Quando a vítima e seus parentes ou aliados avaliam a agressão sofrida não o fazem com a frieza calculista de um juiz, aplicando régua e compasso, somando e subtraindo, medindo fatos e efeitos para definir o que seria a exata equivalência em cada caso. Até porque um dente nunca é apenas um dente. É também um dano moral que, frequentemente, dói mais do que a lesão odontológica. Um dente perdido é também o insulto, a humilhação. Por outro lado, quem sofre a violência reativa vivencia a situação como vítima e não como o algoz que apenas recebe a retribuição por seu gesto, pagando um preço justo. Não é difícil deduzir a espiral de violência que a fogueira da vingança inflama.
Daí a importância de um terceiro personagem: o ancião do clã, o chefe da comunidade, o xamã da tribo. O mediador recebe das partes respeito e confiança, e lhes devolve uma decisão sábia, isto é, reparadora e, ao mesmo tempo, apaziguadora. Reparadora seja para a vítima, seja para a comunidade que testemunha o acontecimento perturbador. Apaziguadora para todos, inclusive o agressor, porque o castigo encerra uma trama que poderia evoluir e escapar ao controle.
Quando o xamã, o ancião e o líder não conseguem mais dar conta dos desafios que se entrelaçam e complicam, e quando os grupos já não sobrevivem isoladamente mas convivem sem consenso quanto à autoridade da religião, o Estado os substitui e consolida esse processo de mediação em escala mais ampla.
Estado e violência
O Estado intervém como mediador impedindo a guerra de todos contra todos. Monopoliza os meios de força, cobra impostos e limita a liberdade individual para oferecer, em contrapartida, ordem minimamente previsível e serviços universais considerados indispensáveis – a começar pela segurança. O Estado substitui –justificando sua existência ao fazê-lo – o circuito infernal, inesgotável e crescente da vingança, e as outras formas em que se realiza a famigerada “justiça pelas próprias mãos”, via grupos de linchadores ou milícias, gangues ou tropas de mercenários.
No Estado democrático de Direito quem faz as leis, quem julga e quem garante seu cumprimento e executa suas determinações não são os mesmos personagens, nem se situam nas mesmas instituições. Para separar essas funções distinguem-se os três poderes: Legislativo, Judiciário e Executivo.
Não são os juízes que fazem as leis. Eles as interpretam e definem o sentido em que deveriam ser aplicadas em casos controversos. O código penal estabelece as regras para a determinação das equivalências. Não estamos mais em tempos de olho por olho, nem dente por dente. Como vimos, no Brasil e nos países democráticos, as penas deixaram de ser os castigos físicos e foram transformadas em privação de liberdade e outros tipos de punição, cujas intenções estão voltadas mais para o espírito do que para o corpo. A meta é mudar quem cometeu o crime, “ressocializar” a pessoa – é esse o termo técnico, que significa educá-la de novo. Já expliquei por que não acredito que isso possa dar certo, mas concordo que foi um grande avanço abandonar a dor física como forma de castigo. Se bem que continue havendo muito sofrimento físico nos presídios em função das condições carcerárias sub-humanas e das doenças que elas propagam. Por outro lado, acho que mesmo não havendo mais previsão nas leis para castigos físicos, eles persistem, na prática, porque, infelizmente, para nossa vergonha, a tortura ainda é comum, no Brasil. Além do mais, a humilhação e o desespero, provocados pela prisão, doem na alma e a dor psíquica às vezes é mais forte do que a dor física.
O fato é que, como nossa Justiça ainda é regida pelo princípio da equivalência, elegantemente intitulado “proporcionalidade”, deu-se o milagre da conversão de dentes e olhos em tempo de prisão e outras penalidades. A equivalência não se dá diretamente entre o mal provocado na vítima por um ato criminoso e o mal a ser provocado na pessoa que cometeu o crime. Até porque a ideia moderna da pena, conforme expus, não é fazer mal para quem fez o mal, mas, pelo contrário, ensinar ao criminoso o caminho do bem, reeducando-o e o afastando da sociedade. Repito que essa é a teoria, não creio que seja a realidade. Se a equivalência não se dá entre mal e mal, também não se dá entre o crime e a pena, uma vez que o crime não privou a vítima de liberdade por determinado tempo (a não ser em raríssimas exceções, os crimes são outros). Portanto, não há equivalência entre um e outro, o crime e a pena, quando esta se realiza sob a forma de prisão. Por exemplo: digamos que o crime tenha sido um roubo e que a pena sejam alguns anos de prisão. O que é que um roubo tem a ver com a privação da liberdade durante certo tempo? São realidades inteiramente diferentes. Não há entre o roubo e a prisão nenhuma equivalência. Entretanto, depois que a lei estipulou determinada pena para o roubo, e que outra lei definiu outra pena para outro tipo de crime, os legisladores e os juristas justificaram a relação entre as penas (suas diferenças, por exemplo, o tempo de duração da prisão fixado por cada uma delas) como sendo equivalentes à relação entre os crimes.
Vou explicar melhor esse ponto, porque é muito importante e, na verdade, é bastante simples, apesar de parecer complicado: a pena de prisão não é equivalente a nenhum crime, mas a relação entre diferentes penas de prisão é equivalente à relação entre diferentes crimes. As penas podem ser mais ou menos severas, mais ou menos longas, o que se mede pelo tempo de duração que cada pena estabelece quando o juiz condena o réu à prisão. Por outro lado, os crimes podem ser mais ou menos graves, porque os danos causados podem ser comparados entre si. Claro que essa comparação é subjetiva e arbitrária, em muitos casos. Por exemplo, como comparar um crime contra o patrimônio, como o roubo de um carro, a um crime contra a honra, como a injúria e a difamação, e ambos a uma agressão corporal ou a um homicídio culposo (aquele que ocorre sem a intenção de matar)? De todo modo, o que acontece é que, orientados pelo saber jurídico, pelo conhecimento histórico e pela experiência internacional, legisladores propõem à sociedade um pacto, um acordo no fundo político. O acordo, trato ou contrato, chame como quiser, poderia ser apresentado dessa maneira: “Vamos combinar o seguinte: isso é crime, aquilo não é; esse crime é mais grave do que aquele outro, o qual é mais grave que o outro, etc… As penas passam a ser X, Y e Z, e elas são mais duras para os crimes mais graves e mais suaves para os menos graves. E assim como escolhemos mais ou menos arbitrariamente uma ordem de gravidade para os crimes (mais ou menos, porque em alguns casos a comparação expressa um consenso praticamente inquestionável, enquanto não há consenso em vários outros), escolhemos para as penas uma gradação de severidade que varia numa proporção correspondente à gradação de gravidade dos crimes”.
Pronto, aí está: o que antes era arbitrário (a relação entre um crime e outro, e de cada um deles com as penas), torna-se necessário, natural, lógico, motivado ou, na linguagem técnica, proporcional, depois da decisão do Congresso Nacional, formulando as leis, e de sua aplicação pelos juízes, advogados, promotores e defensores públicos. Depois que as leis e o funcionamento da Justiça passam a ser uma realidade cotidiana, com a qual nos habituamos, parece que é muito natural todo esse emaranhado que vai se construindo e que liga, numa rede às vezes invisível, fatos, crimes, interpretações, descrições, acusações, julgamentos, aplicação de sentenças e cumprimento de penas. Nada disso é natural. Tudo isso pode ser estudado, pesquisado, repensado, questionado, criticado e transformado. As instituições e as leis, como as pessoas, nascem, mudam, se adaptam, se renovam, amadurecem, envelhecem e morrem – ou, ao contrário do que acontece com as pessoas, são transformadas em outras.
Caro leitor, prezada leitora, é claro que confio em sua inteligência. O problema é que nem sempre confio em minha capacidade de expor com clareza certos temas, quando são espinhosos, mesmo que o raciocínio seja simples. Por isso, tomo a liberdade de voltar mais uma vez à questão da proporcionalidade para lhe apresentar os argumentos por outro ângulo. Se você achar que é demais, que minha tese já está mais do que esclarecida, salte a próxima unidade e vá direto para a seguinte, chamada “Uma aposta diferente”.
Abacaxis e guarda-chuvas
É arbitrária a relação que o sistema de Justiça criminal estabelece entre três realidades incomparáveis entre si:
1) os males que os seres humanos infligem uns aos outros;
2) a prisão que cerceia o deslocamento espacial de indivíduos livres;
3) o tempo.
Por exemplo, o legislador poderá estipular que o furto de um carro vale, custa, equivale ou corresponde a uma certa medida de tempo (digamos, quatro anos) vivido pelo infrator em condição de privação de liberdade, na entidade pública chamada penitenciária, especialmente criada para proporcionar ao transgressor esta experiência.
Está bem. O leitor mais esperto já terá uma resposta na ponta da língua: não só as penas são arbitrárias. Também a moeda estipula valores iguais para mercadorias diferentes, tornando-as equivalentes. Abacaxis e guarda-chuvas são inteiramente diferentes e têm funções distintas. Nesse sentido, são incomparáveis ou incomensuráveis. No entanto, se a unidade de ambos custa, digamos, cinco reais, tornam-se equivalentes do ponto de vista monetário.
Continuam a ser coisas diferentes e incomparáveis, mas podem ser trocadas uma pela outra porque sua utilidade é considerada de mesma importância para os consumidores. Se dou meu abacaxi e recebo um guarda-chuva, tenho boas razões para esperar que possa reverter essa troca, dando meu guarda-chuva a outra pessoa para obter novamente um abacaxi. Ou eu posso abrir mão do abacaxi e ficar com uma nota de cinco reais, porque ela me permitirá adquirir um abacaxi quando eu quiser. Entretanto, como essa mesma nota me permitiria obter um guarda-chuva, posso considerá-la um equivalente de ambos, o que significa dizer que a moeda é um equivalente universal. Claro que a nota de cinco não tem nenhuma propriedade em comum com o abacaxi nem com o guarda-chuva, assim como nenhuma semelhança une a fruta ao utensílio.
Abacaxis e guarda-chuvas, enquanto mercadorias, se equivalem, isto é, têm o mesmo valor de mercado (dependendo da disponibilidade de abacaxis e guarda-chuvas e da procura por eles, ou seja, da oferta e da demanda).
No campo da Justiça criminal a lógica é distinta e a arbitrariedade muito mais perigosa. Não existe oferta e demanda que sustentem a equivalência de preço. Um roubo vale tanto tempo de prisão, um furto corresponde a tanto tempo de privação de liberdade, uma trapaça corrupta que fere o interesse público vale outro tanto de cerceamento de liberdade. A primeira associação entre um crime e um determinado número de anos de prisão é inteiramente aleatória.
Já a segunda associação encontra a primeira como referência. Busca se alinhar com ela, deixando de ser completamente arbitrária, uma vez que se apoia na relação anterior entre crime e tempo de prisão. Isolada, essa relação une duas entidades incomparáveis, isto é, que nada têm em comum. Mas, uma vez que se estabeleceu uma conexão entre ambas, as demais correlações se orientam pela medida que a primeira estabelece.
Por isso, quando se diz que uma punição (a pena) é proporcional (ao crime), o que verdadeiramente se afirma é que a pena para esse crime é proporcional a penas estabelecidas para outros crimes – porque, afinal, como espero já ter deixado claro, nenhuma pena é proporcional a nenhum crime, assim como abacaxis não equivalem a guarda-chuvas. Entretanto, o sistema que conecta tempos de prisão a infrações é tratado como se fosse natural. É como se o crime trouxesse embutido em si o castigo – e não apenas o castigo em geral, mas o castigo de certo tipo e medido de determinada forma –, como se fosse uma relação entre causa e efeito.
Nós acabamos nos acostumando com essa troca de crimes por tempo de privação de liberdade – e também com penas de outros tipos, como prestação de serviços à comunidade, multas, suspensão provisória e seletiva de direitos, etc. Esquecemos que não há qualquer base objetiva, ou qualquer razão ou fundamento natural, para que a sociedade troque como se fossem equivalentes e proporcionais atos que considera criminosos por tempo de prisão. Enquanto acreditarmos nos mitos que herdamos, permitiremos que, em nosso nome, a arbitrariedade se reproduza indefinidamente.