Os interlocutores reunidos em grupo para a discussão dos produtos dos cartéis relâmpagos expuseram, a princípio, as alternativas metodológicas escolhidas por cada grupo. Elas priorizaram, de maneira geral, a produção e elaboração individual das questões surgidas durante o trabalho em cartel, de cada um dos seus participantes, trazidas em seguida ao debate.
A atualidade política brasileira suscita a preocupação dos presentes, o que reflete o espírito presente na cidade, após a ascensão ao poder das forças de extrema-direita, em associação com as diversas formas de fundamentalismo religioso, cuja consequência é o notório avanço, seja no plano das instituições, seja na esfera das relações íntimas, dos fenômenos de segregação.
Uma das primeiras questões levantadas disse respeito à pertinência da escolha do texto de Freud para a discussão do tema da segregação. Sua formulação se apresentou ao modo de uma provocação, que assim interpretamos: o que condiciona para o sujeito, na atual conjuntura, mesmo diante de inquestionáveis motivos para que se revolte, a escolha por permanecer em silêncio e, portanto, segregado?
A formulação anterior, em forma de pergunta, se encadeia com uma segunda pergunta, também levantada como problemática no interior dos diferentes cartéis: haveria, desse modo, alternativa entre o caos amorfo da anomia – que podemos denominar multidão – e o grupo artificial (igreja e exército), definido como massa identificada a seu líder?
Ao grupo de questões antes descrito desenvolvemos, em acréscimo, uma terceira: haveria, quer no plano individual, quer no coletivo, alternativa possível à segregação? Aqui as contribuições dos diferentes participantes vêm se somar à formulação que atingimos individualmente, no interior do cartel, e que diz respeito ao modo como o sujeito resistiria, por meio do seu sintoma, a se deixar alienar pela normalização do gozo imposta pelo Outro da civilização: seria possível fazer derivar desse esforço de resistência, mais além de um tipo neurótico de segregação, como sugere o texto de Freud (1921) um tipo novo de laço social?
Dois eixos de respostas parecem possíveis para as perguntas que foram colocadas:
1) concernente à alternativa multidão/massa, existiria uma dialética entre as duas formas de agrupamento, de modo que uma pudesse responder a outra em seus resultados, ou seja, as consequências da destituição do líder exigiriam, pela angústia então provocada – fenômeno do pânico –, a eleição de uma nova figura do Outro para orientar a formação do Ideal do Eu para os indivíduos, até que as suas exigências, por se apresentarem como opressivas, levassem outra vez ao seu questionamento;
2) é necessário que se dê a eleição do traço de identificação, apanágio do líder que é objeto de amor, para que, no horizonte da humanidade, sejam forjados sujeitos, processo que exigiria a eleição de um Significante Mestre ou Traço unário, e a expulsão (Ausstoßung) de todos os demais, implicando a segregação como processo estrutural da constituição do sujeito.
A dialética entre a multidão e a massa/grupo psicológico estaria sobreposta a uma segunda fórmula, orientada pela dupla ódio/amor. Sua existência intrincada está explicitada pelo conceito freudiano de ambivalência, bem como pelo conceito lacaniano de hainamoration (amódio). É este mesmo o conteúdo de fundo das elaborações de Freud (1921/2006), ao final do capítulo V, quando estabelece que a religião do amor – referência ao cristianismo – prescreve o amor tão somente àqueles que comungam da mesma crença, demonstrando quanto aos demais, ser intolerante e odiosa. Muito embora estabeleça a ressalva de que, na modernidade, a suavização dos fenômenos de intolerância seja uma consequência da queda do ideal religioso, Freud (1921) sustenta sua advertência a respeito do retorno da intolerância, seja pela via da ideologia política (eg. o socialismo), seja pela via da postulação de uma ciência com viés doutrinário, explicitando a necessidade de que se observe o movimento da estrutura e seu retorno, em que o agente da segregação assumiria roupagens diversas e diferentes Ideais.
Ódio necessário, ódio lúcido. Essas seriam as alternativas levantadas no sentido de resgatar o valor dessa paixão que estaria na contramão de um amor que fecharia os olhos aos fenômenos de intolerância, fenômenos esses que responderiam ao recalque de tudo aquilo que, em si mesmo, faria estremecer pela proximidade de um gozo em tudo familiar, ao mesmo tempo que abjeto, e cuja resultante seriam os fenômenos descritos sob a chave do narcisismo da pequena diferença (Freud, 1930/2006). Reconhecer a precedência do ódio talvez fosse a alternativa mais segura ao seu banimento pelo recalque, o qual traria, em si mesmo, o risco de seu retorno por meio dos fenômenos de intolerância.
Se o amor tem, como assevera Lacan (1964), “essência de tapeação”, visto que implica a adequação de si ao Ideal, situado no lugar do Outro, o laço que se estabelece, sob os auspícios da psicanálise, deverá estar atento ao que se visa no horizonte da transferência. Esta, enquanto dirigida ao saber e, portanto, ao incompleto, é a antítese do sentido em sua dimensão imaginária – sentido que permitiria o “triunfo da religião”, anunciado por Lacan. É para essa vertente do amor que aponta Lacan em seu seminário XI, a qual poderia fazer inflexão quanto ao caráter intolerante identificado nas massas: “Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que tu – o objeto a -, eu te mutilo” (Lacan, 1964/1985, p. 254).
Se o mote da segregação é constitutivo quanto ao que tange os coletivos humanos, uma das saídas de sua lógica diz respeito ao autoexílio, como aquele que inflige a si próprio o neurótico. O exemplo de Freud contempla as Neuroses de Guerra, fenômeno característico daquele período – após o término da primeira Grande Guerra (1914-1918) – e que deu ensejo a diversos desenvolvimentos no interior da psicanálise, entre eles o reconhecimento de uma faceta da subjetividade que reedita o trauma nos sonhos do neurótico. Essa insistência da neurose coloca em cena outra pergunta percebida pelos presentes: “é sempre a questão da pulsão de morte? ”
A perspectiva de Freud (1921) é, porém, outra. Se considera a importância da neurose de guerra no contexto das massas, é enquanto esta resiste ao jugo opressivo do líder/Mestre – no exemplo citado o estado militarista alemão. Se, porém, a fuga da alienação ao Significante Mestre que identifica o grupo, explicita-se no fenômeno da neurose, haveria que considerar também os modos de associação que lançam mão do fato da segregação para comporem uma nova experiência de laço grupal, cujos ideais intentam rechaçar a lógica da universalização e do para todos, em benefício de uma fraternidade pelo negativo, a qual visaria, em certa medida, agrupar toda a diferença sob a insígnia da recusa à identidade que massifica. Pensa-se, desse modo, numa saída outra para o dilema da identificação de massa, diferente da figura do “muçulmano” (Muselmann) de Auschwitz, sobre a qual teoriza Agamben (2008).
Os exemplos contemporâneos trazem, dentro da lógica do negativo acima descrita, por exemplo, os novos movimentos feministas e LGBTQ. No campo que diz respeito ao sujeito, a solução que a psicanálise postula se encaminha para a promoção do mais singular no modo de gozo, o qual é candidato a exercer o papel de indutor do laço social pela via do sinthome. Nesse sentido, a estratégia da segregação, entendida pela fórmula “negativa da subjetividade do outro”, conduziria a pensar que essa negativa, tomada na conta da denegação freudiana (die Verneinung), explicitaria a verdade de que somente no exílio da identificação grupal é que alguém poderia ser verdadeiramente reconhecido como sujeito, ou, dito de outro modo, o exilado do laço com a massa é o único verdadeiro sujeito, como bem se enuncia, ainda que por meio de uma negação.
Guilherme Pimentel Jordão
Referências
AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
FREUD, S. (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XVIII, pp. 77-154). Rio de Janeiro: Imago, 2006
FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XXI, pp. 67-148). Rio de Janeiro: Imago, 2006
LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.