A partir das discussões ocorridas no cartel “O último ensino de Lacan” composto por Bernardino Horne, Ethel Poll, Maria Luiza Sarno, Monica Hage e Wilker França (Mais-um), dois temas me interessaram bastante: a pulsão escópica e a opacidade do gozo. Tentarei então articular essas duas temáticas.
Gérard Wajcman2 afirma que há uma mutação absoluta no campo social, onde impera o olho que tudo vê, quer dizer, a ideia de que o real é inteiramente atravessável, visível, que não há mais opacidade. Essa ideologia, como chama Wajcman, é marcada pela ideia de que o olhar é o mestre e está difundido em todos os lugares: política, medicina, espionagem, geografia. Ele afirma que embora haja um olho que tudo vê em todo momento, há uma diminuição do olhar, marcando, assim, a distinção importante entre o olho e o olhar. Ele exemplifica com as câmeras de segurança. Elas estão por toda parte, nas esquinas, escolas e espaços privados, mas quem olha essas câmeras? Há uma multiplicação de próteses de olho e certa rarefação do olhar.
Um ponto fundamental a se destacar é que essas transformações sociais em relação à exposição da intimidade se devem à força da própria pulsão escópica. No Scilicet do “Corpo Falante”, Bernardino Horne3 destaca que, desde Freud, sabemos que o humano “morre pelo predomínio da pulsão de morte, eleva-se à bípede estação e abandona o olfato como orientado por força da pulsão escópica. Ela também comanda outras formas de gozo em nossos dias”. Ou seja, não é que ao se tornar bípede o ser humano passou a ver mais longe, senão o contrário, foi a força da pulsão escópica que fez o humano ficar sob duas pernas.
Essa torção é fundamental, pois marca outro momento do ensino de Lacan. No primeiro momento, Lacan estava interessado no Outro, no desejo, a predominância era do simbólico nas questões do ser. No último ensino, o enquadre é outro, a análise tem como direção o real, o gozo e sua opacidade. Essa mudança de perspectiva possibilita uma torção na clínica: se antes a análise tentava responder ao enigma sexual por meio de um efeito de verdade, no último ensino trata-se de alcançar o que o gozo comporta de opacidade irredutível, como bem pontuou Miller em seu seminário O ser e o Um.
Segue a indicação nas palavras do Miller:
"A questão é que precisamente a análise ortodoxa tenta responder ao enigma sexual por meio de um efeito de verdade, por meio de um “Faça-se a luz!”, uma elucidação, quando se trata, ao contrário, de alcançar o que o gozo comporta de opacidade irredutível. É isso que a heresia lacaniana visa.4”
Para avançarmos em direção ao último ensino de Lacan é necessário colocar como ponto de partida o gozo como fato. Miller nos ensina que: “O ponto de partida dessa perspectiva não é “A relação sexual não existe”, mas, pelo contrário, é um Há. Há gozo5.”
No último boletim “Persiana indiscreta” que precedeu a jornada da Escola Brasileira de Psicanálise da Seção Bahia em 2018, após afirmar que o gozo é o real na experiência clínica, Bernardino Horne6 destaca o “obscuro que se observa no horizonte do gozo opaco, o Real que não se alcança”. Esse “obscuro” destacado pelo autor aponta para as fronteiras de qualquer exposição. Por mais que tentem por fim à intimidade, há algo de obscuro que marca essa impossibilidade.
A opacidade é o próprio limite ao olho-que-tudo-vê, contudo, paradoxalmente, essa opacidade é o que mais está presente em tudo que o falasser faz. O Um-sozinho que se faz pura repetição do mesmo em uma iteração que está fora do sentido e de qualquer garantia7. |