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Durante o ano de 2016 e 2017, fui Mais-um de um cartel online, do qual participavam dois membros da EBP-PE e mais três outras colegas, praticantes da psicanálise, mas não ligadas institucionalmente à EBP.
Nosso texto básico foi o Seminário 5 de Lacan, As formações do inconsciente1, e a frequência foi mensal, com algumas horas de trabalho.
A questão que quero trazer aqui diz respeito aos efeitos dos objetos voz e olhar, quando os corpos estão próximos e quando estão distantes. Nosso cartel vivenciou três tipos de reuniões: o primeiro foi online, estando eu na Bahia e os outros componentes reunidos na Seção Pernambuco; o segundo foi online, com cada um em sua máquina e em sua casa, e o terceiro foi composto de duas reuniões presenciais, com minha ida a Recife.
O que pude observar é que no primeiro tipo de encontro, quando os cinco componentes do cartel estavam reunidos presencialmente, ou seja, sob o predomínio do olhar, os efeitos de conversas paralelas e discussões teóricas se davam entre eles e, por vezes, eu precisava lembrar minha presença, com minha voz. Bom momento para que o Mais-um funcione como êxtimo? Na outra situação, na qual cada um estava em sua máquina, houve uma considerável redução das conversas paralelas e as discussões fluíram de modo mais igualitário, sem a presença dos corpos, nem o predomínio do objeto olhar.
Os dois encontros presenciais favoreceram o vivo de uma interlocução, o vivo do encontro dos corpos e, sobretudo, as ressonâncias da psicanálise no corpo de cada Um.
Estas observações me fizeram retomar a passagem do Seminário 23 de Lacan, O sinthoma:
“Com efeito, é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe. É surpreendente que isso não tenha ocorrido aos filósofos ingleses. Eu os chamo assim porque não são psicanalistas. Acreditam ferreamente que a fala não tem efeito. Estão errados. Imaginam que há pulsões, e isso quando se dispõem a não traduzir Trieb por instinct. Não imaginam que as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer. Esse dizer, para que ressoe, para que consoe, outra palavra do sinthoma masdaquino, é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é. Porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que, no corpo, responde ao que chamei de voz. O embaraçoso é que, certamente, não há apenas o ouvido, e que o olhar lhe faz uma eminente concorrência”.2
O que isso tem a ver com o funcionamento do cartel, que visa manter o furo e a direção ao real em seu modo de funcionamento?
Em um segundo momento, optamos por nos encontrarmos cada um a partir de sua máquina e as discussões fluíram melhor, uma vez que as conversas paralelas diminuíram, o que equivale a dizer que os efeitos dos afetos foram minimizados.
Tais constatações me levaram a concluir que a “eminente concorrência” que o olhar faz à voz interfere no funcionamento de um cartel pela via do efeito que Lacan denominou de “cola”. Quando alguns corpos se encontram, o olhar e seu poder hipnótico, imaginário, domina a cena. Neste cenário, o furo que deve ser mantido para o bom funcionamento do cartel é, indevidamente, preenchido. Caso contrário, quando cada cartelizante entra na cena de trabalho do cartel com o objeto voz, verifiquei que algo de uma enunciação cartelizante comparecia, favorecendo a troca de ideias e a produção de um saber mais singular e condizente com o discurso analítico.
Esta experiência demonstrou, a meu ver, que, a partir de pequenas invenções, um trabalho aconteceu quando um bom uso da tecnologia pôde ser feito.
Resta-nos ainda um esforço que é o de apresentar ao menos Um trabalho, a céu aberto, o que ainda não se deu, e considero, portanto, o cartel inacabado.
REFERÊNCIAS:
BLANCARD, M.-H. “Cartel et Temps Logique”. In: La Lettre Mensuelle. n. 93. Paris: École de la Cause Freudienne, nov/1990, p. 9-11.
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