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Junho de 2013 e a mutação do falo: do “não-todo da massa” à “massa não-toda”
Antonio Alberto Peixoto de Almeida
 

I - Uma introdução sobre a relação entre o falo e a massa

As mutações contemporâneas provocam contínuos conflitos entre o novo e aquilo que é da ordem da tradição. Há, na cultura, uma dissonância de ritmos que causa diversos embates, rupturas e traumas. Dentre os vários ângulos possíveis, esta investigação se propõe à conexão de dois destes pontos: as mutações na relação com o falo e os protestos de junho de 2013.

Lacan critica a ideia freudiana de “todo” e afirma que a massa eclode do “não-todos” em referência à natureza “d´a mulher”1.Ele desenvolve isto com o uso da lógica-matemática, a partir da sequência “0”, “1” e “2”. Sendo assim, o “0” é o que marca a descontinuidade, na medida que entre “1” e “2” pode haver uma adição, mas entre “0” e “1”, não. O importante aí é o que se o “Um” funda a repetição numérica, ele está trazendo a ideia de que neste fenômeno, algo escapa a isto, pois ela emerge no ponto que marca a falta, o “0”.

Entre o 0 e o 1 está aquilo que faz referência à estrutura entre os sexos, que é o falo2. Este media a dissimetria de poder provocada pela inexistência da relação sexual a partir da significação3. Diante disso, Bassols4 diz que o feminino (não-todo) fica entre o centro e a ausência. Há, assim, um trânsito possível diante do falo, que vai desde o ponto em que o gozo pode ser simbolizado até o gozo feminino, sobre o qual a função fálica nada consegue dizer, como afirma Laurent5.

Diante disto, é possível construir uma hipótese, a partir da ideia de que massa vai do “zero ao Um”. O primeiro ponto é que, há, no ponto “zero”, algo da ordem do acontecimento de corpo que não pode ser simbolizado – um além do falo que ocasiona o gatilho que estoura este fenômeno. Depois, se Lacan coloca que a posição d’a mulher em relação ao falo é 6, entende-se que, em um segundo momento, frente a falta de significante no Outro, responde-se através do falo imaginário. No entanto, para a massa consistir é necessária uma significação em comum, dada pelo falo simbólico. Apresenta-se, então, um esquema proposto por Miller7 para aprofundar esta leitura.

Este permite ler que há relações distintas entre o falo e o objeto a. Miller diz que isto se refere à intensidade do gozo – e aí também ocorre a possibilidade, ou não, do compartilhamento da significação fálica. Retornando à massa, é possível pensar que, em um terceiro momento, o falo imaginário dá suporte para a identificação imaginária. Entende-se, no entanto, que em outro, se vai do de tal modo que, com o falo simbólico algo da “troca” se articula e oferece a possibilidade de que uma massa venha a consistir, a partir do velamento de um determinado objeto em prol de um outro, a ideia ou o líder, colocados como mais-de-gozar. Aí, então, esta vai do 8, que é a posição do homem. No entanto, é importante ressaltar que não se trata de pensar em um corpo único.

II - Quatro momentos dos protestos de junho de 2013

As referências que fundamentam a leitura dos protestos são o livro de Locatelli9 (um livro-reportagem) e o estudo de Teixeira10 (uma tese que contém a cronologia dos eventos). Privilegia-se, aqui, a leitura a partir do ocorrido em São Paulo e se divide o acontecimento em quatro momentos.

O primeiro, ocorreu entre 6-13 de junho e teve quatro manifestações, organizadas pelo MPL11, tendo como pauta a revogação do aumento do transporte. Esta parte cessa quando, no último dia, houve uma explosão da violência e o protesto terminou com mais de 200 detenções e repórteres feridos12.

O segundo entre os dias 13-16 de junho e se caracterizou pela veiculação das imagens de violência policial nas redes sociais – inclusive por parte de veículos tradicionais.13 Este foi o ponto de gatilho dos grandes protestos.

O terceiro momento aconteceu a partir do dia 17 de junho, quando houve um estouro no número de eventos pelo país, tal como no de manifestantes – que chegou aos milhares14. As pautas se tornaram difusas, os partidos políticos e os líderes eram rechaçados – o famoso slogan “não é por 20 centavos, é por direitos” serve como síntese.

No quarto, diante da perda de controle do tamanho das manifestações, as prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo anunciaram, no dia 19 de junho, uma revogação do aumento.15 Isto levou a uma progressiva dispersão da massa.

III - Uma hipótese para a relação entre o falo e a massa

Entre os momentos “1” e “3” há, então, duas massas distintas. Na primeira, segundo Locatelli16, havia uma negação dos líderes (o repórter descreve que haviam porta-vozes que se revezavam), mas existia uma ideia em comum – a da revogação do aumento do transporte. Diante disso, é possível dizer que ali havia uma significação que consistia, o que implica em uma posição pautada no
tendo como centro a contestação ao Estado.

A segunda massa negava a unicidade das ideias, além dos líderes. Em outras palavras, não existia uma significação em comum, de modo que não houve um véu em relação ao “não-todo” da massa, que seria o objeto a posto em tal condição que houvesse um compartilhamento a partir do falo simbólico. Trata-se aqui, de pensar na posição . Assim, há uma contestação ao Estado, mas de um ponto muito mais próximo ao zero do que do Um.

Os momentos “2” e “4” servem para pensar o porquê que o “não-todos” não foi velado. O 2 indica que a massa se formou a partir da violência do Estado; o 4 que ela se dispersou a partir da revogação do aumento do transporte público. Apresenta-se, assim, a ideia de que o uso da força consistiu em um Outro que, de tal forma, representou um rechaço à uma posição não-toda. É interessante pensar como isso diz algo a respeito da época, na medida em que as reivindicações não se centraram em torno de uma pauta contra a violência, mas sim na defesa de uma total descentralidade.

A hipótese final é que, se uma massa vai da ausência (zero, não-todos) ao centro (Um, todo) , há na contemporaneidade uma mutação na relação com o falo, que confere a ela, em referência à questão da significação, diferentes composições, a partir de graus distintos de identificação imaginária e de relação com o objeto. Em outras palavras, há desde a possibilidade de que haja a consistência de um todo à uma posição (des)organizada de radical afirmação das diferenças. A questão é que, diante daquilo que Miller17 chamou de “máquina do não-todo” pode advir, como diz Lacan18, também duros processos de segregação. Daí, não se afirmar que junho de 2013 é – ou foi – um paradigma, nem se extrai deste uma “teoria geral das massas contemporâneas”, mas a possibilidade de que existam variações na formação deste fenômeno que podem conduzir aos extremos.

Há sempre um antes e um depois, diante dos acontecimentos que fraturam o tecido civilizatório. Os impactos de 2013 ressoam. Então, que continuemos com a escuta atenta, para podermos nos posicionar, diante das variáveis da cultura, ainda que muitas vezes estejamos expostos aos efeitos do trágico.

 

1 LACAN, J. O seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012, p. 161.
2 LACAN, J. “A significação do falo”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 701.
3 LACAN, J. O seminário livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 55.
4 BASSOLS, M. Lo feminino, entre centro y ausencia. Olivos: Grama Ediciones, 1ª ed., 2017. p. 57.
5 LAURENT, E. A psicanálise e a escolha das mulheres. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012, p. 206.
6 LACAN, J. “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 690.
7 MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Ed. Paidós, 1ª ed., 2º reimp., 2014, p. 229.
8 LACAN, J. “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache”. Op. Cit., p. 691.
9 LOCATELLI, P. #VemPraRua: As revoltas de junho pelo jovem repórter que recebeu passe livre para contar a história do movimento. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2013.
10 TEIXEIRA, A.C.E.M. Internet e Democracia: Cooperação, Conflito e Novo Ativismo Político. Tese de Doutorado, PUC-Rio. 2014. Disponível em http://www.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0912432_2014_pretextual.pdf. Acesso em 01/09/2018.
11 Movimento Passe Livre.
12 Locatelli descreve, no seu livro, estes protestos em detalhes, tendo em vista que acompanhou as manifestações, a partir da sua atividade de jornalista.
13 PIRES, B. Vídeo mostra suposto tiro da PM em direção à janela de prédio. Matéria publicada em 15/06/2013. Disponível em https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,video-mostra-suposto-tiro-da-pm-em-direcao-a-janela-de-predio,1042517. Acesso em 01/09/2018.
14 TEIXEIRA, A.C.E.M. Op. Cit. Disponível em http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0912432_2014_cap_4.pdf. Acesso em 01/09/2018, p. 15.
15 CÁSSIO, B; HERDY, T. Rio e SP anunciam redução nas tarifas dos transportes. Matéria publicada em 19/06/2013. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/rio-sp-anunciam-reducao-nas-tarifas-dos-transportes-8745978. Acesso em 03/09/2018.
16 LOCATELLI, P. Op. cit., p. 186.
17 MILLER, J.-A. “Intuições Milanesas II”. In Opção Lacaniana Online nº 6, 2011. Disponível em http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/Intuicoes_Milanesas_II.pdf. Acesso em 04/09/2018. p. 11.
18 LACAN, J. O seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012, p. 227.>

   
 
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