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Novas formas de autoritarismo marcam os dias de hoje. A “bolsonarização” da sociedade, que faz parecer estarmos diante da ameaça do retorno a velhas formas do autoritarismo, tem um limite. Figuras emblemáticas encarnadas em juízes justiceiros, promotores com superpoderes, políticos incitadores do ódio à diferença, ávidas por ocupar o vazio deixado pelo pai, o fazem pela via imaginária, tal qual Lacan situa o pai no segundo tempo do Édipo: garantidores da ordem universal nos seus elementos reais mais densos e mais brutais1. Mais parecem simulacros capengas da velha autoridade, vacilando entre a selvageria e o derrisório.
A democracia, contudo, não está menos abalada pelos limites do fascismo. Ao contrário, mostra-se cada vez mais exangue. Para C. Laval e P. Dardot, em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal2, estamos num processo de des-democratização, ou até num regime pós-democracia. O paradoxo está em que cada vez mais há países formalmente democráticos, ao mesmo tempo em que há uma desconfiança generalizada entre governantes e governados. Se a democracia liberal estava longe de ser perfeita, ainda havia disparidade entre a expressão da vontade popular e a lógica econômica da acumulação do capital, permitindo um jogo entre elas. O que se produz na atualidade, sob o chamado neoliberalismo, é a liquidação deste jogo, que permitia ações limitantes dos efeitos negativos do capitalismo.
Parte daí o interesse da psicanálise nesse debate. Pensar que a psicanálise é exclusivamente experiência do um a um, alheia ao mal-estar que prevalece no social, é um erro, lembra J.-A. Miller3, destacando que a própria existência da psicanálise vincula-se à democracia, único regime garantidor da liberdade de expressão.
O neoliberalismo não se reduz a uma política econômica, não se identifica a uma doutrina, tampouco é um retorno ao velho liberalismo do século XVIII, mas é uma racionalidade global que incide em nossa forma de existência, transformando a subjetividade. E se, com Lacan, acreditarmos que "deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época"4, mantra ultimamente repetido à exaustão, é imperativo pensar as formas assumidas pela neossubjetividade. Cabe ressalvar, com J. Alemán5, que o termo subjetividade não é sinônimo de sujeito: “(...) é necessário distinguir a subjetividade historicamente produzida pelos dispositivos de poder, lugar de onde a política advém, e o surgimento da existência sexuada, falante e mortal, que por estrutura não pode ser produto de nada” – eis aí o sujeito. Sem tal distinção o debate seria inócuo, uma vez que a psicanálise estaria fadada ao desaparecimento. O conceito de sujeito do inconsciente é a chave, a meu ver, que abre a possibilidade de localizar a psicanálise como instrumento para pensar os impasses da civilização, já que há algo da estrutura do sujeito que é irredutível, impossível de ser capturado por qualquer representação.
O neoliberalismo quer superar a contradição entre os valores hedonistas do consumo e os valores ascéticos do trabalho, liquidando o conflito entre as exigências da pulsão e as da civilização. A empresa passa a ser o modelo geral a ser imitado, uma “maneira de ser”, em que toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de valorização do eu a ser transposto para todos os âmbitos da existência.
Sai de cena a “ética da abnegação” e entra o “sujeito ativo”, que busca a “autorrealização”: temos que nos conhecer melhor, nos amar, nos valorizar, para sermos bem-sucedidos. Daí a ênfase na palavra que escutamos com tanta frequência em nossos consultórios: “autoestima”. Quantos pacientes não atribuem seu sofrimento à “baixa autoestima”? O modelo é o da superação de limites, visando à máxima eficiência num regime de concorrência em todos os níveis.
O sujeito concebido para a máxima realização requer um discurso gerencial que implica múltiplas técnicas. A fonte de eficácia deve estar no próprio indivíduo e não numa autoridade externa.
O discurso capitalista levado ao paroxismo, ao mesmo tempo em que acarreta uma relação perversa com o objeto, baseada na ilusão do gozo total, produz um sujeito que tende a tornar-se ele próprio um objeto que vale pelo que produz e será descartado quando sua performance for insuficiente. Os indivíduos, livres das tradições, devem se autorreferenciar. Cada vez menos se prejulga a eficiência do sujeito por símbolos como diploma, status ou experiência. O que vale é o desempenho avaliado continuamente.
Eis a queda do falocentrismo, seja na vertente imaginária – símbolos de poder perdem força – seja pela simbólica: não se joga mais o jogo promovido pelo falo como o significante que remete à falta e, como tal, localiza o desejo.
O indivíduo é confrontado com o universo da disfunção sempre que se vê incapaz de se “superar” e de se “autorrealizar”. Há toda uma tecnologia para resgatar o homem-empresa: as “asceses do desempenho”, coaching, programação neurolinguística, análise transacional, saberes psicológicos com modos de argumentação empírica e racional. E, claro, a dopagem generalizada, com a qual também nos deparamos diuturnamente em nossos consultórios.
O conceito de sujeito do inconsciente é o que permite à psicanálise se inserir no século XXI de forma “êxtima” ao processo de neossubjetivação, ao mesmo tempo produto e produtor do neoliberalismo. Ao contrário do discurso da avaliação e da quantificação, a promessa da psicanálise, assevera Miller6, é “você não será comparado”. Se o discurso de quantificação se encarna no mercado, onde tudo tem um preço, um valor numa escala de valores estabelecidos, a psicanálise é uma “prática sem valor”, lembra Miller com Lacan, escapando à escala de valores e ao discurso da quantificação.
Se certo cientificismo negligencia a incidência da linguagem sobre o falasser, cabe à psicanálise não tergiversar quanto a isso. Advertidos de que as irrupções do real não podem ser reabsorvidas por nenhuma construção discursiva, os psicanalistas podem direcionar sua escuta mais além dos enunciados do homem-empresa. “Ali onde o indivíduo neoliberal do gozo autista é, o sujeito excêntrico do inconsciente deve advir”, formula J. Alemán7.
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1 LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p. 225.
2 DARDOT, P. e LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
3 MILLER, J.-A. “Conferência de Madrid”. In Lacan Cotidiano n° 700. Disponível em: http://www.eol.org.ar/biblioteca/lacancotidiano/LC-cero-700.pdf
4 LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 322.
5 Entrevista com Jorge Alemán. Disponível em: http://subversos.com.br/uma-esquerda-lacaniana-entrevista-com-jorge-aleman/
6 MILLER, J.-A. “Neuro, le nouveau réel”. In La cause du désir, 98 – Folies dans la civilisation.
7 ALEMÁN, J. Para uma izquierda lacaniana. Buenos Aires: Grama Ed., 2009, p. 20. |
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