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Cartel virtual?*
Teresinha N. Meirelles do Prado
 

A partir da proposta de discussão acerca do uso de tecnologias de comunicação no trabalho de cartel, gostaria de conduzir esta reflexão tomando como referência as experiências de encontros virtuais (por Skype), suas implicações e efeitos. Antes de passar ao concreto da experiência, resgatarei alguns pontos relevantes para esta discussão.

No “Ato de fundação”, Lacan expõe a estrutura da Escola Freudiana de Paris, tal como a de um cartel, avessa à lógica da verticalidade, fundamentada nos princípios da formação de um cartel:

“Para a execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo. Cada um deles (temos um nome para designar esses grupos) se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um. Após um certo tempo de funcionamento, os componentes de um grupo verão ser-lhes proposta a permuta para outro”.1

Essa preocupação se mostra quando ele evoca alguns vícios que podem desvirtuar uma instituição psicanalítica: “Existe uma solidariedade entre a pane ou os desvios mostrados pela psicanálise e a hierarquia que nela impera – e que designamos, com benevolência, como hão de reconhecer, como a de uma cooptação de doutos”.2

Na dissolução da EFP, em 1980, ano anterior ao de sua morte, Lacan evoca mais uma vez a estrutura do cartel para pensar os alicerces do que então passa a chamar de Campo Freudiano, mencionando também a importância do produto próprio de cada um: “A Causa Freudiana não é Escola, mas Campo – onde cada um terá uma carreira para demonstrar o que faz do saber que a experiência deposita. Campo ao qual os da EFP irão se juntar assim que se aliviarem do que agora os atravanca mais do que eu”3. Nesse contexto, a própria dissolução da Escola Freudiana de Paris se aproxima de um dos fundamentos do cartel: a exigência de dissolver-se para que não se cristalize, mantendo assim a psicanálise em permanente movimento e construção.

Naquele momento, era movido pela preocupação de que a permanência da EFP após sua morte pudesse transformar-se em uma assembleia de fieis, jogando por terra os princípios da Causa Freudiana, tal como ele a concebeu.

Considerando esses fundamentos da Escola por Lacan, como pensar a introdução de inovações tecnológicas no funcionamento de alguns dispositivos, sem negligenciar aspectos que caracterizariam sua própria existência? Evidentemente, meu ponto de interesse aqui é o funcionamento do cartel; as elaborações que apresento a seguir decorrem da experiência nos cartéis dos quais faço parte.

‘Mais-um’ virtual?

Sabemos que o cartel foi pensado por Lacan como um elemento fundamental da formação do analista. Com o passar dos anos, contudo, esse dispositivo também foi passando por algumas mudanças, de modo a ajustá-lo às exigências da contemporaneidade.

Hoje, o que mudou na estrutura do cartel, tal como foi concebida originalmente? Se suas reuniões se dão, na sua maioria, através de recursos como o Skype, ainda se trata de um cartel? O ponto nodal desta questão é: o que pode mudar na formação de um cartel de modo que ainda possamos considerá-lo como tal? Que elemento(s) de sua estrutura, em não estando presente(s), não nos permite(m) considerar que se trata ali de um cartel?

Em “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”4, Miller destaca o dispositivo do cartel em sua função primordial de produção de saber, uma elaboração que deve ser provocada, instigada para colocar a trabalho os integrantes desta formação singular que difere do funcionamento típico de um grupo.

A mesma observação fez Lacan em 1980, no momento em que discutia os efeitos deletérios das formações de grupos, as colagens e identificações que emperram a psicanálise. Nesse texto ele afirma, sobre o Mais-um: “Fica a seu cargo velar pelos efeitos internos a essa empreitada e provocar sua elaboração”.5

Se uma elaboração é sempre provocada6, o agente provocador no cartel é o ‘Mais-um’, que deve descompletá-lo, afastá-lo da lógica do todo e da exceção, sem desconsiderar o fato de ser dele um integrante e ter, portanto, um trabalho e um produto a elaborar. Cabe ao ‘Mais-um’ funcionar como um provocador ao trabalho, instigando cada integrante a abandonar fórmulas consagradas e deixar de repetir conceitos aprendidos por meio de frases canônicas, para que possa elaborar suas próprias definições acerca do que investiga, fazendo passar do trabalho de transferência à transferência de trabalho, uma das metas do trabalho do cartel e princípio do ensino pensado por Lacan: “O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho. Os ‘seminários’, inclusive nosso curso da École d'Études Supérieures, não fundarão nada, se não remeterem a essa transferência”.7

Em suma, a realização de um cartel sob a égide do ‘virtual’, não afeta o cerne do dispositivo: a função do ‘Mais-um’ de colocar seus integrantes a trabalhar, de ocupar esse lugar de agente provocador do trabalho. Contudo, fica ainda uma questão: um cartel que aconteça exclusivamente sob a forma de reuniões virtuais, sem nenhuma ocorrência de encontros presenciais, sem ‘corpo presente’, conseguiria se sustentar no tempo?

 

* Parte deste texto foi publicada em francês, em La cause du désir, n. 97.
1 LACAN, J. (1971/2003). “Ato de fundação”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 235.
2 Idem, ibidem, p. 250.
3 LACAN, J. “D’Écolage”. Texto de 11 de março de 1980, disponível na página da AMP: http://wapol.org/fr/articulos/TemplateImpresion.asp?intPublicacion=10&intEdicion=1&intIdiomaPublicacion=5&intArticulo=159&intIdiomaArticulo=5
4 MILLER, J.-A. (1995). “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”. In: O cartel. Rio de Janeiro: Editora Campus, p. 1-10.
5LACAN, J. “D’Écolage”. Op. cit.
6 MILLER, J.-A. (1995). Op. cit.
7 LACAN, J. (1971/2003). Op. cit., p. 224.

 

 

   
 
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