CorreioExpress
home
Efeitos da queda do falocentrismo sobre a formação do psicanalista
Fernando Prota
EBP/SP
 

Um dos efeitos dos remanejamentos da organização social em torno do falo, sendo o conceito de falo tomado enquanto poder da palavra, é uma profunda transformação na relação dos sujeitos com o saber, mais especificamente na transmissão do saber.

Ao afirmar que no contemporâneo “temos o saber no bolso”¹, Miller indica uma profunda mudança no estatuto do saber, que a rigor acompanha a mudança do estatuto do próprio objeto a na contemporaneidade. Mudança estrutural e não conjuntural causada pelo discurso capitalista: a transformação rápida de todo e qualquer objeto em objeto comum, ou seja, em objeto intercambiável².

O saber, em sua di(z)menção mais cortante, se relaciona ao objeto agalmático que concerne a algo que causa o desejo para além da instrumentalização do saber. Assim, uma das dimensões do saber é poder conformar (enformar) o vazio dando direção à pulsão.

A formação do psicanalista se dá pelo tripé freudiano: análise pessoal, supervisão e saber exposto. Mas este saber exposto nunca está totalmente separado do saber suposto (suposto ao inconsciente, certamente), ou ao menos, não deveria estar. Mais do que outros campos de ensino, a relação entre objeto a e saber, ou pulsão e saber, encontra sua pertinência na formação do psicanalista. Assim, quais serão os efeitos da mutação da relação saber/objeto na formação dos psicanalistas hoje?

A transmissão de Lacan

Recolho três indicações sequenciais em Lacan, que apontam como estava em jogo para ele, a transmissão de um objeto enodado ao saber, na dinâmica de seu ensino.

No seminário 10, dos anos de 1962/63, ele constrói uma banda de Moebius e faz circular pela audiência, dizendo: “... Ela tem um pequeno interesse, porque isto é o a. Entrego-o a vocês como uma hóstia, porque em seguida vocês se servirão dele. O pequeno a se faz assim.”³ Lacan, como ensinante, está no lugar daquele que produz um objeto que condensa uma verdade. Não “A” verdade referencial, mas algo de um saber “esculpido”, produzido, e que será incorporado pelo outro, que se servirá dele, como quem se serve de um alimento.

No ano seguinte (1964) será o próprio corpo de Lacan que estará na bandeja do ensino: “A verdade, nesse sentido, é aquilo que corre atrás da verdade – e é para lá que eu corro, e onde os levo, como os cães de Acteon, atrás de mim. Quando eu tiver encontrado o alojamento da deusa, sem dúvida me transformarei em cervo, e vocês poderão me devorar, mas temos ainda um pouco de tempo diante de nós.”⁴

Lacan faz referência ao mito do caçador Acteão que ao encontrar a deusa Diana nua em uma gruta com suas ninfas é transformado em veado e consumido por seus próprios cães de caça. A deusa representa esse saber (a verdade) que não se toca sem um risco, sem estar envolvido com seu ser. Porém, trata-se de algo que encontra sua finalidade, sua “serventia”, no ato da transmissão, no banquete que alimenta a matilha (que somos nós).

Quatro anos depois (1968) Lacan retoma a questão do ensino como algo que se incorpora, que literalmente se come, porém já aí irritado com os efeitos do capitalismo e sua incidência na transformação de todo objeto em objeto comum, algo que na época se dava, segundo ele, pelo “movimento cultural”, termo que ele ironiza: “Qualquer coisa que nasce tem certas qualidades, certo verdor, certo relevo. O dito movimento cultural tritura-o até que se torne plenamente reduzido, infame, comunicando-se com tudo... Desenraizado ele se esgota... Todos aceitam comer merda, mas nem sempre a mesma. Tento então arrumar uma nova.”⁵

E hoje?

O objeto a saiu de sua casa, de sua Heim, e de estranho íntimo, de vazio fiador do lastro com o Outro, foi para a praça pública onde brilha em prateleiras reais ou virtuais. Foi dessa forma que o saber foi parar no bolso, muito antes do Google. Assim, como o circuito pulsional ainda pode se ligar ao saber dando-lhe sua espessura mastigável, deglutível, incorporável e eliminável enquanto resto?

Faço esta questão a partir de minha experiência como professor do instituto de psicanálise e minha angústia com certo tipo de relação com o saber que muitos alunos apresentam. Uma “não causação”. Na escuta de professores que passam pelo meu consultório, essa é uma questão constante. Uma supervisionanda nomeia de “jovens de desejo morno”. Como transmitir que o vivo do saber psicanalítico, que pode verdadeiramente instrumentalizar um desejo que venha a ser chamado de “desejo do analista”, depende exatamente da relação do saber exposto com o saber suposto e com o objeto “imposto” pela vida?

Aposta no cartel e no seminário por conta e risco

Creio que a aposta a ser feita para a vivificação dessa relação, no seio de nossa comunidade, não é nenhuma inovação up to date e sim uma aposta no cartel e no seminário por conta e risco, mas por diferentes dimensões na relação do saber e do objeto.

O cartel é o espaço-tempo de um esculpir. O saber aí é esculpido por cada membro do cartel em torno de seu vazio em forma de questão. Trabalho difícil, cheio de altos e baixos, de envolvimento e cansaço. Um trabalho longo no tempo cronológico (até dois anos). O desejo é testado e retestado. A pulsão faz vários giros. Algo se satisfaz e a castração se apresenta o tempo todo. O mais-um zela para que o processo vá até “seu fim” e mais, até “seu fim para cada um”. Trata-se de um verdadeiro artesanato: a trança do saber e do objeto e as mutações entre ambos.

Neste sentido, questiono o uso do significante cartel para as mais diversas experiências de trabalho em conjunto, como: cartéis relâmpagos, cartéis com mais-um previamente escolhido, questão única para todos os cartelizantes, produção conjunta, etc. Talvez com esse uso do significante cartel, estejamos dando um tiro no pé, e transformando uma das nossas melhores ferramentas de enlaçamento entre saber e agalma, em mais um objeto comum na prateleira institucional, e assim a serviço do discurso capitalista.

O seminário por conta e risco é outro locus privilegiado dessa relação saber/objeto. Em geral tomamos o “risco” contido em “seminário por conta e risco” como um risco fálico, ou seja, se eu falar besteiras ou pérolas, o mérito ou demérito é todo meu, não há um aval da Escola sobre o que digo, a não ser o aval prévio de me aceitar como membro.

Porém, o risco em jogo é muito maior e trata-se de poder transmitir esse risco aos participantes. O risco que existe em uma relação com um pensamento que toca a vida. Um pensamento cujas formulações transformam o viver de quem fala. Transmitir que o fio afiado da navalha da língua não é somente uma metáfora.

Em outros tempos isso foi palpável pela via do Ideal, vide a vida de um Marx, ou de um Galileu. Aí o pensamento colocava em jogo viver ou morrer. Não precisamos chegar a tanto. Porém, num seminário estamos na posição do pesquisador, e em psicanálise o objeto pesquisado é feito pelos significantes que conformam o objeto que somos. Não é possível ousar nesse campo sem colocar o corpo em risco.

Tomando a arte como o campo mais pungente desse enlaçamento saber/objeto, podemos dizer que no cartel essa trança se dá pela via de uma escultura, enquanto que no seminário ela se dá pela via da performance, que não transmite nada senão colocar em jogo o risco do artista.


REFERÊNCIAS

1 MILLER, J.-A.  Em direção à adolescência. Disponível em: http://minascomlacan.com.br/publicacoes/em-direcao-a-adolescencia/ Acesso em 20/09/18.
2 COTTET, S. “O sexo fraco dos adolescentes: sexo-máquina e mitologia do coração.” In Ensaios de clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
3 LAURENT, E. "Post-war in drugs?" In Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Escola Brasileira de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum, 2011.
4 LACAN, J. O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1998, p. 178.
5 LACAN, J. Meu ensino. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 2006, p. 80.

 

   
 
Instagram Instagram