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Sobre selvagens e lobos: democracia e fascismo
Cleyton Andrade
 

A psicanálise não precisa se transformar em filosofia ou ciência política para discutir alguns dos principais temas que constituem os espaços sociais e a cultura. Assim como a clínica pode ser mais que uma experiência da singularidade. A clínica pode nos fornecer chaves de leitura e instrumentos relevantes para pensarmos a política e o político sem que se reduzam essas análises a psicologismos selvagens.

Em uma das interpretações possíveis para as origens do fascismo como fenômeno internacional, e não apenas italiano entre os anos de 1919 e 1945, elas estariam relacionadas a uma crise do capitalismo em sua fase imperialista e a necessidade da burguesia de manter seu domínio, lançando mão de uma dominação das classes mais baixas através de mecanismos de centralização do poder e das forças. O Estado capitalista pode se apresentar sob a forma do regime fascista. Neste caso ele seria representado por uma elite que considera dispensável tanto o povo quanto as instituições mediadoras no campo político. Entretanto, o fascismo pode estar presente de maneiras distintas, e não apenas na forma de um funcionamento de Estado.

Autoritarismo de dominação, monopolização da representação política, uma ideologia fundada no culto por vezes mítico de um líder central, desprezo pelas singularidades e individualidades, sistemas corporativistas, aniquilamento de oposições, uso de violência e terror, mesmo que sob a justificativa de garantir segurança, lei e ordem, são frequentes no discurso fascista. Portanto, se falocentrismo não é um conceito do campo psicanalítico, nem da retórica fascista, é, contudo, o eixo sobre o qual esta ideologia se estrutura. Isso implica que falar da queda do falocentrismo, para além dos debates sobre gênero, sexualidade, desejo, tem também efeitos políticos. Tomarei o conceito de falo tal como é usado no contexto da luta social e política – daí a noção de queda do falocentrismo – e não apenas enquanto um conceito strictu senso da psicanálise.

Por um lado, o bastião do discurso fascista é moralista e prescritivo de uma normatividade que se autoriza em referentes naturalistas; donde uma de suas mais claras formas de apresentação social é o homem de bem. Aquele que faz do seu modo de gozo uma representação essencialista e modelar. Qualquer modo de gozo distinto daquele prescrito pelo centro da norma, qualquer emergência de um significante da falta do Outro, será tomado como desvio a ser corrigido. O homem de bem, uma espécie de eufemismo pretensamente virtuoso de fascista, acredita que o falo é um referente pleno, central, positivado e ordenador de um sistema distributivo.

O homem de bem reivindica sua dupla referência fálica: 1) primeiro pelo essencialismo/naturalismo do Bem, que seria o centro de sua norma ética; falo este que ele defende com violência se for preciso, e se dispõe a partilhar a normalidade normativa de seu modo centrado e correto de vida (seu combate à corrupção pode desconsiderar questões sociais de acessibilidade, direitos, saúde, saneamento, combate à miséria, etc e ainda ser defendido como virtude); 2) o segundo referente fálico remete ao homem como fundamento de uma lógica hierárquica e distributiva de valores; a masculinidade como critério e norma, respondendo ao uso mais comum do conceito social de falocentrismo.

Mas, por outro lado, não nos iludamos. Quem sorri por trás das bravatas é o capitalista. É ele quem declara que o verdadeiro falo positivado que partilha modos de vida e relações é o capital. Para o fascista, ou para o neofascista, a verdade do falo não está somente nas bravatas moralistas e normativas. Para o fascismo a verdade do Bem é o capitalismo e a centralidade do poder fálico. Ou seja, para o fascista a verdade do fascismo é o falocentrismo do capitalismo.

Nesse sentido a crítica ao mesmo tempo clínica e política feita por Lacan é fundamental. Para ele Freud e Marx introduziram o sintoma no campo do saber científico; e por que não dizer também, no campo social e político? Uma ciência econômica, não importa se neoliberal ou neofascista, que exclui o sintoma da população, do proletariado, do povo, das massas (seja qual for a matriz pensada), não passa de uma estratégia para tentar o apagamento do significante da falta do Outro, esvaziando as consequências éticas da divisão subjetiva. Vale lembrar que é apenas este sintoma da população que poderá questionar os fundamentos desta ciência econômica. Em outras palavras, para Marx uma economia que inclui o sintoma do proletariado é uma ciência do capitalismo que inclui a sua própria verdade.

“A verdade do capitalismo é o proletariado. (...) Proletário, que quer dizer isso? Quer dizer que o trabalho é radicalizado no nível da mercadoria pura e simples, o que significa que isso reduz ao mesmo nível o próprio trabalhador”.1

Trabalho e trabalhador reduzidos à mercadoria, ou seja, não ao valor de uso, mas ao valor de troca. Será preciso um ato para que o trabalhador aprenda a “se saber como tal”2 para chegar ao estatuto de cientista, assumindo uma consciência de classe3.

Se para Lacan a verdade do capitalismo é o proletariado, além de fazer uma crítica ao capitalismo, faz indiretamente uma crítica ao discurso fascista. Isso nos permite pensar que o falocentrismo do fascismo não passa de uma fantasia. A crítica lacaniana revela primeiro que a verdade em jogo, aqui, não se trata nem de falo nem de centro. A verdade terá que ser pensada em termos do objeto a mais-de-gozar. O objeto a, e não o falo, é a causa e o efeito da economia capitalista e por extensão, do discurso fascista.

Os enunciados fascistas flertam com as identidades das massas, com seus significantes-mestres de uma utopia regulada pela fantasia de um falocentrismo, enquanto seu discurso, sem palavras, aponta para outra direção. Ele tem como causa e verdade, o objeto a mais-de-gozar.

Em Totem e Tabu4 a criança, o selvagem e o neurótico são nomes de uma série que demonstra que o processo civilizatório não deixa de produzir negatividades. Em Psicologia das Massas5 um quarto termo é acrescido à série: as massas. Ou seja, por mais que o processo civilizatório se esforce por produzir positividades, ele não deixará de produzir selvagens, formas de negatividade. Freud nos mostra as massas, o povo, etc como um conceito fundamental para pensar o furo no simbólico no debate entre psicanálise e política.

Em outras palavras toda concepção de uma clínica do sintoma ou de uma política do sintoma é irredutível a discursos de extrema direita e fascistas. A política do sintoma é inconciliável com modalidades de laço social que forcluem as massas/povo enquanto resto inassimilável a todo processo civilizatório. O que torna fácil a compreensão do quanto esse conceito de povo é essencial para interrogarmos o que chamamos de democracia.




1 LACAN, J. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 169.
2 Idem.
3 Idem. Ibidem.
4 FREUD, S. (1929). “O mal estar na civilização”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, 1987.
5 FREUD, S. (1912-1913). “Totem e tabu”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. vol. 13.

   
 
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