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Fogo frio
Henri Kaufmanner
 

O livro “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, eternizado no cinema por François Truffaut, nos apresenta uma sociedade em que qualquer forma de escrita é proibida. Para evitar a leitura, os livros são incinerados e eventuais leitores são perseguidos e conduzidos de maneira forçada ao cativeiro para tratamento. A história se passa em um mítico tempo futuro, quando um regime autoritário acredita que a leitura torna as pessoas improdutivas. O enredo tem nítida inspiração na experiência nazista, cuja lembrança não nos deixa esquecer a disseminação da prática da queima de livros.

Podemos nos arriscar a dizer que o futuro, enfim, chegou, e as previsões da ficção cientifica não se mostraram exatamente como foram imaginadas.

Lacan, entrevistado em 1977, dizia que nunca havia lido um romance de ficção científica, mas que ouvia muito o que diziam sobre o estilo.1 Para ele, a ficção científica se constitui daquilo que a desconstitui, a dizer, um inconsciente do qual não sabemos nada a não ser que é estruturado como uma linguagem. Ela se faz daquilo que a própria ciência exclui, pois ela não se presta mais que para “exprimir estruturas inconscientes absolutamente particulares”. O discurso da ciência, por sua vez, seria incapaz de se realizar plenamente, pois desconhece o inconsciente. Assim, a ficção científica é o que articula o que vai bem mais além daquilo que a ciência, como suporte do saber, enuncia.

Como ficção científica, “Fahrenheit 451” revelava já em 1953 uma certa disposição do avanço tecnológico. Se hoje em dia, os livros, de fato, não são queimados, a ideia de que a escrita torna as pessoas improdutivas impera sob o reino do imperativo superegoico da performance. A entrada em cena do mundo virtual produz, no mais das vezes, um efeito devastador sobre as letras, rechaçando os furos que se precipitam a partir da escrita e, consequentemente, recusando a leitura. Como um fogo frio, os últimos acontecimentos eleitorais ao redor do planeta nos mostram de maneira exemplar seu poder de incineração.

Em seu artigo “The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete” de 2008, Chris Anderson2 anunciava a era dos Petabytes3 e as mudanças que sua chegada produziria. Segundo ele, na escala dos petabytes a informação não é assunto de uma taxonomia ou ordenação, mas uma estatística de dimensão agnóstica.4 Isso exige uma aproximação inteiramente diferente, o que requer abrir mão da crença de que os dados podem ser visualizados em sua totalidade. Somos forçados a ler os dados primeiro matematicamente, para posteriormente estabelecer um contexto. Como paradigma dessa era, ele faz referências ao Google, ressaltando que este conquistou o mundo simplesmente com matemática aplicada. Não há qualquer interesse do Google em saber alguma coisa sobre a cultura ou sobre as convenções. Basta fazer uso dos melhores dados, com as melhores ferramentas analíticas. Isso já é o suficiente. Nada de análises causal ou semântica. É assim, por exemplo, que o Google consegue traduzir línguas sem que realmente as conheça. Isso permite, também, encaixar anúncios a conteúdos sem qualquer conhecimento do assunto em jogo nesses anúncios, ou mesmo seu conteúdo.

Portanto, provoca Chris Anderson, esqueçam qualquer teoria do comportamento humano, da linguística ou da sociologia. Qualquer taxonomia, ontologia ou psicologia é dispensável. Afinal, quem sabe por que as pessoas fazem o que fazem? Com um número suficiente de dados, os números falam por si mesmo.

Esse é o desafio que se abre para a psicanálise.

A era dos Petabytes propugnada há 10 anos por Chris Anderson, anuncia um novo modo de se relacionar com o saber e seus furos. O não saber passa a ser desconsiderado, numa perspectiva pragmática de que o acúmulo de dados revela as evidências de maneira satisfatória. Não é mais preciso pensar em correlações ou em algum sentido singular da experiência.

Como operar nesse mundo, a partir do discurso da psicanálise, é a pergunta que se apresenta para todos nós psicanalistas. Como podem as bibliotecas, que tradicionalmente zelam pela virulência dos livros, participar dessa novidade? Não há como, simplesmente, não nos inserirmos nessa realidade ampliada, afinal, vale assinalar, é a subjetividade de nosso tempo. Uma subjetividade em que os falasseres se oferecem em uma subserviência adicta, bem aos moldes do discurso do capitalismo.

 

1 LACAN, J. “Interview de Lacan sur la Science-fiction”. In: La Cause du désir, n. 84, Paris, p. 8-9, 2013. Entrevista concedida a Igor e Grichka Bogdanoff em 4 fev., 1977.
2 ANDERSON, C. “The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete”. In: EDGE. Disponível em: www.wired.com/2008/06/pb-theory/. Acesso em 20 novembro, 2018.
3 Petabytes é a medida de capacidade digital mais alta no momento. O ponto mais alto na série: kilobytes<megabytes<gigabytes<terabytes<petabytes. Um petabyte corresponde a quantidade de dados processados pelos servidores do Google a cada 72 minutos.
4 ANDERSON, C. Op. cit.

 

 

 

   
 
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